ressonância órfica, de Luci Collin

Vamos nessa viagem ao pantanal ao matagal ao bananal ao quintal, por favor, diz que concorda comigo. A gente paga em 12 (doze) vezes sem furos e nem sente. Dessa vez a gente leva pouca bagagem. A gente faz fotos belíssimas e em todas os olhos sempre abertos e nunca vermelhos. Prometo que será lindo. Podemos fazer amor no pântano, imagina que maravilha, entre jacarés a nos assistir, curicacas, piranhas abençoando nosso conluio, corumbás-de-asa-chaleira, leões, como assim É savana? Como não tem? Tem sim, basta estarmos dispostos desinibidos vitaminados determinados que tem SIM.

Pensa: sexo artesanal ortogonal emocional irracional fraternal tridimensional descomunal meridional fenomenal confessional devocional carnal excepcional passional marginal cardinal multifuncional proporcional infraconstitucional venal transcontinental tradicional patronal setentrional informacional original unidirecional adicional seminal multinacional sensacional profissional atitudinal organizacional diagonal regional ficcional

Garanto que será inesquecível e completo, será insubmisso e regenerador. Pensa, por que não? Vamos nadar no mar morto, ártico, vermelho, balsâmico, no oceano abísmico, vamos galopar na via ápia láctea sépia arterial pública. Seremos inclusive públicos e únicos, faz um esforcinho, amor da minha vida, quebra o vidro, rompe o lacre, pisa na grama, flana, frequenta, aumenta o volume, sacode a poeira, se tiver vontade boceja. Não diz simplesmente “deixa disso!”. Vamos viver com a intensidade dos grandes, pensar grande, meu benzinho.

Imagina: podemos ir às compras, receber descontos, concorrer ao carro, dar depoimento de satisfação, sair no jornalzinho do bairro com foto e tudo, ganhar amostra grátis, ficar por dentro dos lançamentos, passar cartão, receber troco, doar moedinhas, jogar uma moeda na fonte, contribuir com grandes causas, derrubar suco na roupa, receber panfletos, anúncios, filipetas, convites para uma peça de teatro infantil, cupom pra almoço por quilo, vale-ducha, tomar um sunday duplo, jogar mini-golfe, pegar um cineminha, provar uma bermuda jeans.

Basta um gesto seu que eu largo tudo, nem hesito, desisto completamente de sucesso fama louros pódio, largo emprego e nem questiono nem bufo, rompo com a família nem que não tenha, saio da fila que nunca chega mesmo a minha vez, abandono o cargo de confiança, largo vícios quaisquer que sejam, cigarro boêmia chiclete roer unhas, adoto novos hábitos, nunca mais implico, nunca mais assobio, não uso diminutivos, nunca mais ronco, nunca mais praguejo, não deixo queimar a comida, não deixo comida no prato, tomo a vacina, nunca mais palito o dente, compro roupa nova, faço regime e emagreço, faço dieta e engordo finalmente, vou pra academia, mudo de estilo, mudo o penteado, corto, deixo crescer, compro um carro, vendo o carro, compro uma bike e, sim, uso capacete sempre, vendo os meus discos e livros que afinal pra que que a gente guarda tanta coisa, torno-me minimalista, doo órgãos, troco a mobília, monto um aquário com galeão afundado, jogo fora as estátuas, rasgo cartas antigas, ando só a pé, nunca mais furo fila, nunca mais falo com a boca cheia, passo a gostar de berinjela, faço exame de sangue um hemograma completo, aprendo a fazer baliza tricô biscoitos planilha, volto pras aulas de inglês, mando cartões de natal, passo a limpo a caderneta de telefones, encero o chão da sala da área da varandinha, conserto o cano, arrumo a gaveta, queimo as fotos antigas, me desfaço da coleção de chaveiros, de autógrafos, de revistas, de selos, de posters, de esperanças, de dores, de arritmias — basta uma palavra sua.

Considera: o grau de satisfação conseguida, as estatísticas, os gráficos comprobatórios, a eficácia, a metodologia executiva, as minúcias, os lucros, as bolsas e financiamentos, os desafios, as regras claras do edital, a logística mais que propícia, os sistemas de informação, a produtividade dos sentimentos, as cláusulas vigentes e as destituídas, os fatores humanos envolvidos, a liderança, a inovação, o incremento no currículo, as voltas que dá o sol.

Amor não diz que a vida é complicação! Talvez na próxima quinta VOCÊ venha EU volte, o preço da passagem baixe, EU diga VOCÊ cale EU silencie perante a banda VOCÊ fale pelos cotovelos EU abaixe a cabeça talvez na quarta VOCÊ erga a cabeça talvez na terça EU saia antes e VOCÊ consiga ficar mais um pouco talvez os relógios todos atrasem os sinos não soem as andorinhas não cheguem as mariposas caiam no esquecimento a juventude passe talvez a velhice toda seja abortada e EU dance na frente da polícia e VOCÊ durma no topo da montanha em neve e EU cisme que o alaranjado é o mais bonito e VOCÊ confie na revolução dos astros talvez na terça talvez no sábado pela manhã talvez na casa da praia no meio da floresta na rua em dia de grandes promessas na esquina onde marcamos seria, poderia ser inevitável a perda.

Evita: dizer que maçada, seu soubesse tinha ficado em casa, nada como o travesseiro da gente, tá salgado demais, tô com uma dor na perna esquerda, minha úlcera hoje tá me matando, minha vida hoje tá me matando a saudade é corrosiva as prestações vão vencer e eu não acredito no sistema que porre que tédio, evite a todo preço dizer que nada é tão ruim que não possa piorar e, por favor, por obséquio, por gentileza, por fineza, não venha com leis de murphy leis delegadas leis imperiais leis de seno e cosseno leis de trânsito leis de newton leis do universo em movimento.

A lista que me pediste dos motivos porque te quero (separados por vírgulas): quero porque te quero, quero porque te quis sempre, quero porque quis querer-te, quero porque esperei para poder querer tanto, quero porque tanto esperei para ter o que era ter-te, quero porque ter-te era tanto e era o tanto que eu quero, quero porque querer-te era o querido desde sempre, quero porque o desde sempre fez-se ter-te, quero porque os motivos se fizeram quando esperar era já ter-te, quero porque quis-te.

São dez
São dez direções que me levam a uma única
A minha pessoa mais íntegra no em mim que só existe com você.
O último recurso seria amar-te menos. Mas já tentei tratamento terapia benzedeira greve de fome greve de cama greve de mim e não
consigo.

Luci Collin, curitibana, é ficcionista, poeta e tradutora. Tem mais de 20 livros publicados, entre os quais Querer falar (Finalista do Prêmio Oceanos 2015), A palavra algo (Prêmio Jabuti 2017) e Rosa que está (2019). Participou de diversas antologias nacionais e internacionais (EUA, França, Alemanha, Bélgica, México, Argentina, Peru, Uruguai). Traduziu Gertrude Stein, Gary Snyder, E. E. Cummings, entre muitos outros.