Na praia: elas já quarentonas, bem quarentonas, encontrando-se para um fim de semana, depois de tanto tempo. Tantos tempos, aliás. Nesta tarde se poderia marcar o tempo em muitos desdes. Trinta e sete anos desde. E trinta e dois. Vinte e nove. Vinte e quatro. E treze anos desde, este dói tanto, mas elas calam, como calam tanto. E agora sete. Sete anos desde.
Descem a pequena trilha escarpada ajudando uma à outra. Laura, a mais velha: tênis, shorts, camiseta, boné, muito protetor, muitos cuidados a cada passo, calculando-se em cada movimento. Sara de biquíni e havaianas, cabelos ondeados a média altura, as pontas mais alouradas, as raízes já brancas, vindo à frente, contravento.
Quando chegam à areia, Laura tira os tênis e a camiseta, confere se a parte de cima do biquíni está bem amarrada, e avança, a bolsa cheia ao ombro esquerdo. Sara leva às mãos apenas as havaianas, a carteira na bolsa de Laura, já que.
A praia quase inteiramente vazia de tudo que não a substância do vento, aquela luz, a quentura do sol. O mar verde.
Caminham com deleite.
— Essa areia fininha significa que a praia é bem antiga, geologicamente. Feito nós duas — diz Laura, e ri, buscando cumplicidade.
Sara ri de leve, partilhando aquele pão com a irmã, desde quando mesmo não se veem? Sete anos. Parece haver amor ali. Mas o amor é sempre por um fio. Talvez, no caso delas, como tantas de nós, o fio às vezes seja mais frágil, menos disposto a: resistir –– esse esforço que dói.
Aquele riso que não presenciava há longos anos deixa Laura confiante. O ângulo de cada onda num determinado momento em qualquer praia incita riscos imensuráveis:
— Você tem falado com o Carlos?
A outra crispa-se um pouco, mas tenta não perder a candura da voz, o sol é tão bom, sete anos, a areia molhada. Macia.
— Você sabe que não.
— Na verdade não sei. Não sabia. Não de verdade.
— Você sabe que ele não fala comigo desde… Só no velório da mamãe…
— Eu sei. Mas justamente, depois do velório, talvez…
— É. Mas não.
Chegam mais ou menos ao meio da praia. Sara olha o mar, com o queixo levemente erguido. À custa de muita porrada, aprendeu a levar o queixo sempre em riste para conseguir enxergar o horizonte. Se baixa a guarda: fim de linha. O fim da linha pode ser muito próximo, muito rápido, em cada esquina, ela sabe. Já viveu alguns. E conseguiu tecer novos carretéis.
Laura tira uma canga da bolsa e estende na areia. Em vez do mar, fica olhando a mais nova, com ternura, aquele corpo bonito. Não é que ela ainda estranhe, faz tanto tempo desde, mas por baixo da calma ela sempre se indaga como a irmã seria se ainda fosse Pedro. Se ela não fosse quem é. Lembra Simone de Beauvoir: não se nasce mulher, torna-se uma.
A outra segue mirando as águas, tão longe de quando era Pedro, mas também já era Sara, ela também conhece Beauvoir e entende, e concorda, mas para ela é mais confuso e ao mesmo tempo tudo é tão certeiro, esse sorriso olhando o mar, foi tão doloroso tornar-se essa mulher que ela já era e seguir tornando-se a mulher que ela quer ser e isso não acaba nunca, ela sabe. Por isso olha o mar. E sorri.
— E você, tem falado com ele?
— Muito de vez em quando.
— E como ele está? Ele e todo mundo — pergunta, novamente compartindo pão com a irmã. Ela sabe que Carlos não pergunta dela, o amor naquela família sempre foi tão difícil. Exceto pela mãe, que feito um verbete de amor — amor \ô\ s.m. 1. Dona Carmen — dizia-se pelos cômodos da casa, cuidando da prole, feito uma cola entre todos e todas, impedindo o pai de expulsá-la quando, e quando necessário, com a dureza de que só os amores incondicionais são capazes, como: se recusando a ver o filho enquanto ele se recusasse a ver Sara, e depois tornando a vê-lo por causa da primeira neta, e o desobedecendo ao falar à menina sobre a tia, mostrar fotos. Agora são apenas ela e Laura, depois do pai, da mãe, e enquanto Carlos se recusa. O amor é tão difícil, é preciso praticar. Ela se vira para a irmã aguardando a resposta, o rosto franco, sem mágoa.
— Estão bem. Letícia vai fazer sete anos, tá aprendendo a ler. E o Tiago já tá falando. A Vanessa pergunta de você, quando o Carlos não tá perto.
É bom compartilhar o pão.
Sara volta a fitar o oceano. Mas em cada ângulo, em cada onda, em cada instante, o risco imenso, iminente. Ela não vê. Começa a desamarrar o biquíni.
— Vamos na água.
— Mas por que você tá tirando o biquíni? — Sara já está tirando a calcinha. As pupilas dilatadas de Laura: — Sara, por favor…
A voz dela não é apenas de súplica. Há uma ordem ali, de irmã mais velha mas também algo maior, algo que a caçula conhece bem, e que dói tanto, aquele desamor de tanta gente ordenando seu corpo, feito não tivesse o direito de sorrir ao sol e correr ao mar da forma que deseja, por que, por que não?
Ela para, a calcinha pelos tornozelos, entregando-se à areia em sua própria nudez de tecido: despida de vestir outra nudez. Dessa vez a pergunta sai-lhe petulante, como não fora quando perguntou se a irmã falava com Carlos, se ele estava bem, ele e todo mundo, as crianças, a esposa submissa:
— O que que tem, Laura?
O queixo levemente erguido. Abaixar a cabeça é fim da linha, ela conhece os fins de linha, e deixar que mandem em seu corpo é um que: nunca mais. No átimo de tempo que segue à pergunta, ela se vira, o queixo agora erguido à irmã, ela toda nua, eu sou assim, eu não sou esse biquíni, a gente tem que ser o que é, tantos anos e você ainda não entende isso, que eu tenho que ser quem eu sou?
— Isso não é uma praia de nudismo.
— Toda praia é de nudismo, Laura. Aliás, as praias não são disso, nem daquilo, nem de nada. Elas estão aí, simplesmente, e que bom que a gente pode curtir. Peladas, inclusive.
— Tá bom, eu sei, não precisa vir de papo militante, você entendeu o que eu disse. Putz, será que tudo precisa ser uma luta pra você?
— Eu luto quando preciso. — O rosto sério.
— Você não precisa lutar comigo. Não agora. Eu só acho que você não devia… A gente nem conhece aqui, pode chegar alguém a qualquer momento, pode passar um barco, eu não tô falando nada demais, a gente veio de biquíni, custa ficar de biquíni? — A voz trêmula. Sara luta quando precisa, e só ela pode dizer quando precisa. Laura sabe.
“Você não precisa lutar comigo”. Não? As duas se olham. Quando um não quer, dois não brigam, a mãe dizia. Não? Como é difícil saber o momento de lutar e o de estender a mão. O amor é tão difícil, a cada ângulo, cada onda, cada instante. Tantos riscos imensos, e a gente quase nunca sabe quando é mais arriscado amar ou lutar. O gosto do pão secando na boca.
— Você não precisa tirar o seu biquíni se não quiser, mas não vem mandar no meu corpo.
— Eu não quero mandar no seu corpo!
— Vocês nunca querem. Mas sempre acabam tentando.
— Que vocês, Sara, para com isso, tá só a gente aqui, a gente veio aqui pra se conectar…
— Exato! — Sara a interrompe. — Estamos só nós aqui, e a gente veio pra se conectar, então deixa eu me conectar com a natureza do meu jeito, e me conectar com você do jeito que eu sou, eu sou essa mulher aqui, Laura: nua, sem vergonha de quem eu sou, não vem jogar em mim nenhuma vergonha que você tenha do meu corpo ou do seu.
A outra se retrai, molusco, diante da nudez erguida da irmã. Ressentida, um pouco. Magoada, quase no sentido físico da ostra que se magoa, em sua carne gelatinosa, ao contato de qualquer rispidez, qualquer matéria afiada. Nua também, a seu jeito, na fragilidade da nudez, ao contrário da irmã: bicho forte na sua entrega ao mundo.
— Você sempre me acusa… Acusa a gente… — ela sussurra, entre atordoada e vestindo-se também para o combate, molusco-aranha, embora sem porquê. Pelo que lutam os que não precisam? Para mostrar que podem. Para fugir ao amor, tão mais difícil do que a luta mais renhida.
— Agora é a gente? Não era só nós duas? Você nem percebe… Por que você não me deixa ficar nua se eu quiser? De verdade, Laura, por quê? Eu sou tão adulta quanto você, eu sei o que eu tô fazendo… E daí se chegar alguém? E daí?
Ela mira firme os olhos da irmã sentada na canga, e dentro daqueles olhos o que ela sabe que eles veem, mesmo depois de tanto tempo: Pedro. Desde sempre. O amor é tão difícil, e Laura não consegue. Se não fosse aquele fantasma nos olhos da irmã, talvez Sara conseguisse, e pudesse amar pelas duas, por Carlos, pelo pai, por tanta gente do outro lado do morro que separa a praia do mundo; mas Pedro, ali, naquele olhar fechando-se como um punho, Pedro sempre nos olhos de Laura, porque ela não consegue.
Talvez se aquele olhar fosse de outro, de um estranho, talvez Sara perdoasse. Mas ela também não consegue, o amor é tão difícil, deus, e nenhuma delas consegue. “Não se nasce mulher, torna-se uma”, então eu preciso ir até onde não quero pra me tornar plenamente mulher aos seus olhos, Laura, pra extirpar esse fantasma da sua visão, então eu vou. Ela se arma com a rapidez de quem já lutou incontáveis vezes, de incontáveis maneiras, mesmo com armas que talvez não devesse, ela sabe como dói ser humilhada, ela poderia não retribuir a dor com dor, mas:
— Você tem inveja do meu corpo, Laura. Fica aí com as suas banhas se dobrando por cima do biquíni.
Tão difícil.
— Pelo menos eu não tenho esse monte de cicatrizes. Cicatriz de quem apanhou na rua, apanhou de macho, essas marcas horrorosas, olha pra você!
— Isso aqui são marcas da vida, sua escrota. A vida é isso aqui, não sua assepsia, no seu carro fechado, no GPS do celular, no ar-condicionado, naquele seu emprego, seu dia a dia sem graça, sem risco! — Ela lembra aquele vídeo engraçado que se popularizou na internet, com um cara mais velho esbravejando a um adolescente assustado: a vida não é a porra do seu toddynho gelado não, moleque! Toddynho, será que ainda existe? Toddynho, yakult, danette, marcas que não são marcas de verdade, não na concretude mais exata da existência, será que ainda existem? Essas existências sem muita concretude. Feito Pedro nos olhos da irmã.
— Vai se foder, Sara, você acha que viveu mais porque sofreu mais, porque apanhou mais?! Você acha que é melhor do que eu, do que tanta gente, porque se fodeu mais?! Talvez você tenha merecido boa parte das porradas que levou, porque você quis, porque você pediu!
— Cala a boca, você não tem ideia do que tá falando, você tá aí a mesma princesinha de sempre, achando que entende a dor dos outros e que pode mandar nos outros, mandar em mim, mas você não tem ideia do quanto você é ridícula e patética nessa sua vidinha bem comportada, sem marca, sem luta, sem sentir a porra do sol na pele nua! Você não sabe porra nenhuma, Laura!
— Sai daqui, sai daqui! Me deixa em paz, eu não vou deixar você estragar minha praia com os seus complexos e essa raiva de sempre, eu… Eu…
Antes que ela abaixe os olhos, Sara vê. Não há mais Pedro ali. Laura sentada, quase tremendo, quase à beira de chorar. Sara não queria que fosse assim, mas não consegue de outro modo: desde quando mesmo? Desde quando precisa enfiar assim suas mãos de sangue e terra na irmã até destroçar o conforto da imagem que a outra tem de si, para que só assim a imagem de Pedro também suma? Mas antes Laura se recuperava mais rápido. Ou talvez seja dizer que antes ela se recuperava.
Hoje, o sol pesa-lhe mais. Sara vira-se em silêncio, sacode a calcinha com os pés e vai ao mar. O amor é tão difícil.
Tudo isso e: ao longe, tão longe que não me enxergavam, cotovelos à areia, eu as olhava, com a banalidade de uma tarde de sol, começando a se odiarem para além do cicatrizável. E ainda seriam irmãs por muito tempo.
Thássio Ferreira. Escritor, publicou os livros de poesia (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Editora UFPR, 2018), obra vencedora do I Concurso Literário da Editora UFPR, e agora (depois) (Autografia, 2019). Mantém a coluna “Alguma coisa em mim que eu não entendo”, na Revista Vício Velho, e tem contos e poemas publicados em revistas como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Ruído Manifesto, Mallarmargens, Germina, Revista Ponto (Sesi-SP) e InComunidade (Portugal). Seu conto “Tetris” foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017.