aquele grão de vento no cabelo, de Helyana Manso

Dedicado a M.C.

O barulho dos compartimentos de bagagem sendo fechados, aquele estalo de plástico agora mais seco pelo ar frio e tratado da aeronave. Vozes dos comissários de bordo, as pessoas falando baixo, é meio da madrugada, silêncio dentro e fora. Fora do avião, fora da pista, dentro das casas. Silêncio.

Você fala comigo, ouço sua voz no primeiro plano desse fundo que reconheço, o barulho dos compartimentos de bagagem sendo fechados.

À sua direita, essa mulher não está com você. Você está comigo.

À sua esquerda, esse homem também não está com você. Comigo, você está comigo.

Você me fala do dia, de como se apressou, como cansou, como o almoço foi curto, mas bom; da correria para chegar ao aeroporto. Eu te ouço o tempo exato depois; começo a ouvir quando você para de falar. Enquanto te ouço, você já está falando de novo. Ouço com o olho na nova gravação sendo feita, pensando que a conversa ainda não terminou, pensando, que bom, ainda estou com ele.

Você, essa mulher, esse homem e mais tantas outras pessoas estão já compartilhando o momento tão único que é viajar de avião; e que parece banal mas não, não pode ser banal; vocês entraram dentro do corpo de metal, corredor, o bicho cilindro que aguenta a intempérie, que se equilibra em tão absurdamente pequenas rodinhas e, com vocês sentados quase sem conforto, taxia e voa. Ele voa. Ele voa com vocês dentro.

E quando vocês saem de dentro dele, vocês não estão mais aqui, estão lá. Chegaram lá como pedra que cai na água e não gera vários círculos antes do último, apenas o último que chega na borda. Chegaram lá sem pisar a terra, o asfalto, a grama, o caminho entre o aqui e o lá; sem que a umidade do ar se alterasse; sem chuvas no rosto, apenas traduzidas em turbulências, as chuvas se expressando no chacoalhar do corpo. Chegaram sem que o sol fosse esticando e encolhendo e esticando a sombra.

Você foi de um lugar a outro com sua sombra intacta.

Você, essa mulher, esse homem e mais tantas outras pessoas estão compartilhando tudo isso e, no entanto, você está comigo; você compartilha comigo, e eles que compartilhem entre eles, a mulher, o homem e todos os outros no avião. Eu fui enfiada aqui, sentada entre os dois, entrada pelo seu ouvido, saída pela sua boca.

Sorrio, sim, sorrio na madrugada da minha casa, sozinha e silenciosa, dentro e fora, esse silêncio tão especial da minha cidade mesmo durante o dia, silêncio de muitas vozes e poucas máquinas, de caminhos percorridos por braços e pernas. Sorrio agradecida pelo momento que você divide comigo como se voar nada fosse. Me conscientizo da prioridade momentânea que ganhei, seu telefone te afastando dos vizinhos de fileira, do cheiro antisséptico, mas real; dos desconhecidos, mas reais; seu telefone te aproximando da realidade do seu pensamento, nos transportando para um lugar nem cá nem lá, um lugar cavado nessa fileira de três pessoas, ela, ele, eu e você. Fui transportada para dentro desse avião e entro humilde nos seus ouvidos, vinda da sua lembrança. Não esperava ser lembrada na partida.

Obrigada pelo embarque. Pena eu não poder decolar, é do que mais gosto. Agora você viaja só, com mais tantas outras pessoas, algumas e outras não sós.

Penso que, quando você voltar, quando a ausência do ruído das máquinas da minha cidade te receber, eu voltarei a ser um ponto no radar, relembrado a cada pulso. E, em algum momento, o meu acender vai coincidir com seu círculo concêntrico mais interno e receberei uma mensagem, talvez um café, talvez um café de manhã.

Teria gostado de viajar com você, morando em seus ouvidos, em você, te acompanhando no calor dos dias. Mas não me incomoda esperar sua volta para construir, ao alcance do seu toque, a minha existência em você; a minha existência que você vai carregar consigo, nos bolsos, nos cabelos, entre os dedos e que estará mesmo quando você for, quando fechar a porta, quando atravessar, quando cobrir com o lençol e perguntar cadê.

Ainda na mesma semana, ao abrir a janela, verei minha rua transformada em canal. Minha sala transformada em canal. Finalmente Veneza será mesmo uma cidade canal. Pontes que saem das águas e levam às águas. Acqua alta. Meus móveis arruinados, os tapetes, a tinta das paredes, talvez os eletrodomésticos. A luz preventivamente desligada na madrugada.

Eu sei. Esta acqua alta formada por maré, tempestades, aquecimento, lixo na lagoa e o fato raro que precisa confluir para amarrar todos os fatores e criar o fenômeno, para que a água suba verdadeiramente. E ela subirá. A definitiva acqua alta precisa do Siroco, o vento brotado no Saara, subindo para o norte e abalando a Espanha mas que, só de vez em quando, com muita força, chega até aqui.

E se ele chegou, e então eu sorrio com a acqua alta, apesar do meu abalo pelas perdas, nossas perdas, objetos, tintas, paredes, afrescos, igrejas porque, se o Siroco chegou, é porque cheguei aí. Entrei naquele avião com você e desembarcamos no deserto.

Helyana Manso, formada em piano erudito, cantora de música popular e fotógrafa, agora também escreve. Passou por oficinas de escrita com Marcelino Freire, Ronaldo Bressane e Reynaldo Damazio. Tem dois contos publicados em coletâneas e foi selecionada para cursar, em 2020, o Clipe (Curso Livre de Preparação do Escritor), promovido pela Casa das Rosas. Nele, já passou pelos módulos de Anita Deak, Rafael Gallo, Sheyla Smanioto, Cris Judar e Cidinha da Silva.