O dia da insubordinação civil
Capítulo 1
David Scheidt era um homem bom. Jamais deixou de pagar o valor total da fatura de seu cartão de crédito black, modalidade sem limite pré-estabelecido para despesas e inacessível à maioria dos mortais. Tamanha virtude lhe rendeu, entre vários outros benefícios, o direito de trafegar com seu utilitário importado e movido a diesel em uma faixa exclusiva para cidadãos íntegros como ele na Avenida Paulista, coração da maior cidade do Brasil. A pista seletíssima, gerida pela administradora da bandeira de seu cobiçado passaporte de plástico com microchip de ouro, foi construída no lugar de uma velha ciclovia, e por contrato com a antiga Prefeitura jamais poderia ser bloqueada, permanecendo livre de congestionamentos. Quem dirigia por ela também não precisava parar em sinais de trânsito e tinha direito a quase o dobro do limite de velocidade das outras faixas. Os demais seres não tão virtuosos que passavam pelo local a pé só podiam cruzá-la quando não houvesse nenhum carro a uma distância de pelo menos cem metros. Não se tratava de tarefa difícil, contudo, especialmente por serem poucos os veículos que detinham o direito de por ali trafegarem, uma vez que o mundo dos ungidos e dos bem-sucedidos, ao contrário do enxame vergonhoso dos inglórios, nunca fora populoso. Todo o resto da frota, inclusive os táxis, ônibus, carros de polícia e ambulâncias de hospitais que carregam moribundos com perfil de crédito inferior precisavam se esmagar nos engarrafamentos intermináveis, no parco espaço que ainda lhes cabia, no mundo tão pequeno para tantos deles.
A faixa foi criada há alguns anos para que pessoas de bem não fossem prejudicadas pelas manifestações dos baderneiros, que durante muito tempo foram quase diárias e que provocaram, segundo os que ditam o certo e o errado, inúmeros transtornos para quem desejava trabalhar e ajudar o país a crescer. David, no entanto, um dos poucos clientes seletos que pela avenida passavam todos os dias, nunca viu um desses protestos desde que chegou a São Paulo, sem um tostão no bolso. Foram extintos há algum tempo.
As massas cansaram. Exauridas pelas medidas punitivas, pelo cerco implacável aos descontentes na vida real e na virtual, pela condenação moral, e dominadas pela sensação de impotência que lhes foi entranhada, dispersaram silenciosamente. Cederam à luta diária pela sobrevivência. Renderam-se a uma mais-valia feroz que não dava chance de conforto, proteção ou ascensão social, mas que todos os dias prometia a glória que ninguém conquistaria, e que quase todo mundo passou a acreditar ser possível. São Paulo tornou-se uma gigante pacífica, adestrada e adoradora da meritocracia, sua verdadeira padroeira, pobre apóstolo tardio cujo nome cristão acabou por batizar aquele lugar cuja alma fora a leilão de privatização, e com lance inicial muito abaixo do que valia.
São Paulo viu fechar quase tudo o que um dia foi chamado de público, e o que sobrou virou comércio honrado, empreendimento inovador ou contrato arrojado. O verde do maior parque da cidade passou a cobrar de seus habitantes a sua visita, em nem um só banheiro de toda a metrópole deixou de ter uma máquina de cartões de crédito e débito em sua entrada. Até as praças ganharam seus planos de negócios e seus executivos estressados com o balanço, não o de brinquedo, mas aquele que deveriam apresentar ao final de cada ano para seus acionistas. As massas converteram-se em indivíduos e os cidadãos em clientes. A noção de bem comum foi reduzida a performances estatísticas de pesquisa de satisfação e o sentimento de pertencimento por identidade e pelo compartilhamento de direitos foi trocado pelo vazio.
As massas perderam sua identidade na cerimônia de coroação do Mercado como o novo Soberano de São Paulo, a mais nova cidade-feudo obediente do liberalismo radical, e desobediente a tudo o que não parecesse com liberdade irracional. Alçado à referência maior de seus pobres habitantes, o Mercado derrubou com truculência e velocidade impressionantes o empoeirado e já sem credibilidade Estado, condenado por corrupção e por atraso. Graças ao novo Soberano, a maior cidade do país passou a ter um gerente no lugar de um prefeito, e um conselho de acionistas onde uma vez figurou uma Câmara Municipal, cuja entrada ganhou ares de multinacional. Um modelo, passaram a pregar os paulistanos mais entusiasmados, que se espalharia rapidamente pelo Brasil, ou pelo menos pela parte menos indolente dele. Uma cidade-empresa capaz de gerar lucro a seus acionistas só poderia ser um plano fadado ao sucesso e aos investimentos vultuosos dos estrangeiros, admirados e ávidos por participarem de tamanha empreitada.
O sucesso do novo déspota e de seus asseclas, contudo, passou a depender tanto da credibilidade dos investidores, quanto da imbecilidade dos moradores. E para manter o segundo, foi preciso rasgar a Constituição e impor a nova Carta local do individualismo e da pretensa premiação pelo esforço pessoal. A nova lei criminalizou a solidariedade, demoveu da sociedade a capacidade de atribuir importância à res pública, de entender e de aceitar o fracasso, e de ver utilidade no tempo livre e no aprendizado desinteressado. O privado tornou-se cláusula pétrea, uma espécie de primeira emenda, além de centro da existência. O lucro, por sua vez, ganhou status de atividade essencial e parâmetro de todas as coisas: o princípio, o meio e o fim. Tudo passou a ser feito por ele e para ele, amém.
Na cidade-feudo e modelo de negócios não havia mais espaço nas mentes e nos corações para manifestações e por isso David nunca as viu na Paulista. Se as visse, teria franzido as grossas sobrancelhas de sua face com traços árabes, em evidente reprovação, mesmo na época em que dependia da avó, morava em São Caetano do Sul e levava na mochila velha um sanduíche de mortadela para substituir o almoço durante as aulas da faculdade de finanças no centro da cidade. Não há dúvidas, no entanto, que depois do que aconteceu, preferiria ter visto aquelas manifestações moribundas diariamente atrapalhando o tráfego dos pobres, porque nem de longe elas tinham o poder que outra, muito pior, silenciosa, inesperada e de natureza desconhecida passou a ter.
| trecho do romance Calote (Editora Mondrongo, 2020). |
Leonardo Valente é escritor, jornalista, professor de Relações Internacionais e diretor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ. Tem diversos livros publicados, como o romance Charlotte Tábua Rasa, de 2016, e a antologia Apoteose, finalista do Prêmio Sesc de Literatura de 2018.
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