Sempre retorno, em sonhos, às últimas imagens de minha avó. Da sua morte que continua sem sentido em minha memória. O cacimbo[1] esfriava todas as tardes e aquela parecia a terminável tarde. O céu estava distante de qualquer ruborização de poetas, uma tarde inútil aos que vivem atentos às questões práticas da vida como para os valiosos detentores da descrição obsessiva dos estados difusos do quotidiano. A figueira do nosso quintal permanecia seca como nos anos anteriores esteve, e reduzida do seu crescimento desde que atingira a igual altura da minha avó Hebo, ela já obedecendo à curva da idade. Das coisas que me recordo, uma delas é que naquela manhã ela não tinha regado as plantas, sua única propriedade, como fazia noutras manhãs. Durante os anos vi minha avó perder dedicação pela casa toda e ficar somente pelas plantas. Dizia-me que o nosso crescimento, as nossas necessidades adultas tomariam tudo que ela cuidava. Estava certa, naquela tarde pude confirmar. E ela ainda lembrou com seu olhar saído da cadeira onde sempre permaneceu estática.
A voz do meu irmão, surgida num grito de romper as paredes da garganta, assustava-a. Havia já dias que ele e a irmã da nossa mãe disputavam pela propriedade da casa. Hebo ensinou-nos que era também nossa mãe, que a tratássemos assim e nunca de outra forma. Agora não nos parece tanto. Desde que faleceu nossa mãe, ela nos quer tirar as coisas que elas construíram juntas em alguns negócios que faziam nas Lundas. Tirou-nos um terreno e pretendia depois nos retirar também a casa.
A fúria dos dois criava um intenso movimento e o levantar de indignações ocupava a sala de vozes. A discussão se acresceu e tomava os móveis e a decoração. Quando viu um estilhaço da loiça quebrada lhe pousar na unha enegrecida, minha avó Hebo sentiu um calafrio percorrer seu corpo. O medo de ver uma lasca lhe perfurar o dedo e o frescor misturado da tarde a fez mover os pés numa agitação incomum.
Apesar do terror, ela firmou-se no assento. Eu a observava e sentia o mesmo medo que ela, enquanto imaginava tudo ruir sobre nós os dois. Vi minha avó deitar as mãos no volume de pano e de lá retirar um terço. Os seus antebraços deixou-os caídos no colo e a cabeça no mesmo alinhamento, as duas mãos concentradas no terço, com os dedos rondando entre as contas para a reza do Pai Nosso, e, finalmente, o rosto, faziam-na numa figura inferior a despedaçar-se. Corri até seus pés em busca de segurança, embora soubesse que ela não podia mais dar-me. A fé católica de Hebo criou meu firmamento depois de nossa mãe partir. Eu a procurava sempre quando um medo como aquele controlasse os meus pensamentos.
— Nesta casa não pões os pés… não! — a voz acesa do meu irmão moveu de susto o ombro de minha avó.
A outra voz respondia asco e derrotada.
— A casa é minha, eu sei o que fazer dela. — gritou irmã de nossa mãe.
— Até onde eu sei a casa foi comprada por ela e mais ninguém, não havia essa tua parcela. — meu irmão defendia que ficássemos com a propriedade inteira da casa. Ela tinha intenções de dividi-la para novos inquilinos. Fazia assim desde que perdera os seus negócios todos nas Lundas e entrara em dívidas inacabáveis. Ao tomar primeiro o terreno de nossa mãe não se importou com a reprovação de Hebo, a quem nos últimos anos nem lhe presta visita depois de a ter abandonado connosco, duas crianças. Hebo não morreu por causa da casa, ela não precisava defender mais nada. As plantas lhe bastavam.
Eu gostava imenso da casa. Gostava das noites em meu quarto, quando acordava entre o escuro e seguia a iluminação dos candeeiros à petróleo feitos de lata que condiziam ao quarto de Hebo. Ela deixava vários acessos pelas seis divisões da casa, punha-os como um mapa do meu quarto para o seu. As negruras das chamas continuam nas paredes, não penso em tirá-las. São os traços da minha segurança. O que seria de mim sem aquelas luzes acesas nos corredores e nos compartimentos noturnos da minha infância.
Aquela confusão entre o meu irmão e a irmã de nossa mãe não matou Hebo. Ela morreu por angustia de uma profecia. Aquela ideia velha devia ter voltado a ela naquela tarde desgastante. Ouvi a profecia primeira vez durante o comba[2] da minha mãe. Ela contou para meu irmão eu e mais alguns primos, e o nosso desamparo foi maior porque se parecia que depois da nossa mãe restava apenas sua irmã que poderia ir embora a qualquer instante. Mas não foi a morte que nos tirou do afecto e da protecção da irmã da nossa mãe.
Se tivesse que escrever em livros a profecia que perseguiu Hebo desde a juventude a chamaria de profecia das ausências. Ou do desaparecimento. Todos os seus filhos tiveram mortes desaparecidas. O filho mais velho de Hebo tinha desaparecido dois meses depois das perseguições do Maio de 1977 em Luanda; a segunda filha tinha ficado por uma mina em 1988 (e isto só foi determinado anos mais tardes, enquanto a família pensava apenas no desaparecimento); Hebo enterrou o corpo do terceiro filho sem a alma estar lá, disse-nos. Tinha se ido com o estado de loucura que teve antes da morte. A história deste meu tio era interessante para mim: foi um pirateador de filmes soviéticos no mercado do Roque Santeiro e morreu quinze dias depois do país entrar oficialmente para o novo sistema político. Minha mãe morreu em Katanga, na República Democrática do Congo, depois do nosso pai a ter levado com o engano de encontrar diamantes que o negócio das Lundas já não lhes dava. Sou um órfão de diamantes.
Hebo contou-nos que a profecia lhe tinha sido anunciada na juventude. Viviam tempos de boa pesca na Ilha de Luanda, uma vez mulher entrou por sua casa. Anunciou-lhe que tudo quanto Hebo vivia não lhe pertencia. Minha avó pensava que aquela mulher devia querer o seu homem.
— Verás tudo acabar, antes de acabares tu. — disse isto e se retirou da casa de Hebo com uma pequena colher, onde minha avó viu seu reflexo em pranto. Esta mulher jamais existiu, diziam para ela quando recontava a história às outras pessoas. Na morte da nossa mãe, ela confortou-se por nos ver crentes de que era uma profecia.
Creio que Hebo viu tudo isso de volta quando meu irmão fez voar a loiça toda da nossa cozinha para expulsar a irmã de nossa mãe. Cada palavra dita entre os dois, movia Hebo nesta crença anterior. Um esclarecimento obstinado dos seus anos de velhice. O medo e a memória constituíram-se nela, iluminados como um trovão, e Hebo não suportou a ver última filha fechar sua história.
Movida por sua própria energia, esta que já há muita se julgava apagada, Hebo olhou-me de soslaio e levantou-se, quando jamais se poderia achar que conseguia. Cruzou a porta, vigiada apenas por mim, escondido atrás de sua cadeira sempre imóvel. Relinchou a porta de madeira do quintal com um movimento vagaroso. Os vizinhos estavam todos ali na frente à espreita. Vi entrar alguns para talvez conter a confusão. Todos olhavam apenas a confusão e nunca em Hebo, eu era o único. Seguia-a, notei que se desamarrava dos panos que lhe cobriam em diversas camadas e cores e padrões.
Eu não queria caminhar perto dela e perguntar,
— onde vais avó?
eu queria acompanhar os passos dela para ver sem interrupção onde ia. Os meus amigos, dias depois, contaram-me que eu corria atrás dela gritando do medo da confusão lá em casa. Mas eu cumpria o mesmo silêncio de Hebo. Ela sentia-se movida de propósito. O medo e a angústia, eram estes propósitos.
Duas ruas, uma estrada pequena e talvez novecentos metros de caminhada, Hebo tinha dado à praia. O mar não tinha grandes agitações, os passos dela também não. Tocaram-se lentamente.
Vi seus olhos entre o cristalizado e o enegrecido. Os terços sempre firmes nas mãos.
Os panos dela ondulavam de espumas.
[1] Época seca em Angola, que decorre de Maio a Agosto, caracterizada pela humidade.
[2] Ritual fúnebre em Angola.
Luamba Muinga nasceu em Luanda, Angola, na última década do século XX. É crítico cultural, produtor e também curador de arte. É cofundador da revista eletrónica Palavra&Arte, centrada na produção artística emergente em Angola. Em 2018 dirigiu o minidoc Capitães Vulneráveis — A vida de crianças em situação de rua. A sua produção artística passa pela prosa, poesia e textos performáticos.