cabeça de quimeras, de Regina Ribeiro

Os coletores passaram mais uma vez com seus grandes cachorros sem focinheira. Eu disse que não tinha nem pro osso. Esse tinha a cabeça raspada e tatuada. Um grande dragão com a cauda se enrolando no pescoço. As tatuagens cobrem as partes do seu corpo que não estão escondidas pelos couros, jeans rasgados, braceletes e grandes e grossos anéis. Eles fazem de tudo pra botar medo, esses coletores, para aparentarem serem durões. Esses dias vi um deles bater num velho raquítico e nojento, aquele asqueroso que fica de braguilha aberta, fuçando o lixo do cruzamento. O velho se agarrava a seus poucos pertences como se valessem de algo. Velho doido. Mas tinha que bater? Pra que, eu me pergunto, pra quê?

Cortei minhas luvas pra deixar metade dos meus dedos livres. Não consigo lidar com as mãos quando estão enluvadas. Com a parte que cortei fora, enfeitei os meus cabelos. Não dá pra jogar nada fora, nada. Fiz bem porque um velho, quando passei, me olhou com desejo. Fazia tempo que ninguém me olhava assim. Me mostrou uma moeda. Fingi que não entendi. Tenho que dizer que fiquei com medo. Corri pra lona e soltei Quimera. Ixi malia quem é a coisa mais fofa da mãe? Ela me olha de volta com os olhinhos pequenininhos de pura devoção. O focinho longo de tubarão eu tenho vontade de esmagar de tanto amor. O dia em que encontrei Quimeras foi o dia mais bonito da minha vida. Ela estava lá, um cocozinho escondido assustado embaixo dos entulhos da construção.

Quimeras me segue de perto enquanto vou contando para ela coisas pelas quais vale a pena viver. Como me faltam alguns dentes, minha fala está comprometida, mas Quimeras me entende e acarinha minha mão com o focinho úmido. É, eu bem que fiz de cortar as luvas. Os meninos passam e riem da nossa conversa. Tenho pena do mundo de linguagem limitada que é o deles. Nunca entenderam as coisas que eu e Quimeras entendemos.

Quando voltamos, o coletor esta lá, esperando. Veio com o facão.

Antes que eu possa pensar ou ter medo, ele já deu um golpe certeiro no pescocinho da Quimeras. Ela deu um gritinho agudo e depois agonizou. Parecia cansada até mesmo para sentir dor.

Linha, agulha, lágrimas salgadas, tiro as partes moles e costuro, costuro, as pontas da agulha furando os meus dedos, a raiva estufando o peito, a garganta comprimida, as grossas gotas de sangue nas pontas dos dedos, o ranho escorrendo, o grito de dor abafado, cérebro, córneas, sangue, nervos no saco de lixo, pele, couro, dentes costurados.

E quando os outros carrinheiros virem o horror, quando mães olharem pelas suas janelas e virem, quando os vendedores ambulantes, pipoca, picolé, algodão-doce virem, eles vão vir.

E, enquanto ele receber pauladas de tudo quanto é lado, enquanto o sangue quente jorrar, por trás da multidão que lincha, ele vai me ver, meu sorriso desdentado escondido debaixo da pele, do focinho, da cabeça da Quimeras morta que agora é chapéu, segunda pele, totem, prova. Eu, vestida de Quimeras, as peles da Quimeras, a força da Quimeras, eu, mulher com cabeça de cachorra, cabeça cheia de dentes.

Regina Ribeiro é formada em Comunicação Social no Paraná e desde 2013 mora na França, onde fez graduação e mestrado em Filosofia pela Universidade Paris-Sorbonne. Acabou de finalizar o seu primeiro romance.