em três atos, de Danilo Brandão

01. Prefácio

já reparou? já reparou que engraçado o apontador? ao mesmo tempo que destrói, constrói. em zigue, zague. zigue. zague. o desenho abstrato se forma metodicamente. ponta a ponta. como um bando de soldados alienados. vai um. depois outro. depois outro. o ritmo depende do comandante. daí vai do observador. se decide pela revolta ou pelo legalismo. se olha bem atentamente para uma ponta, verá uma lança. pontiaguda, linda, formando-se meticulosamente numa unidade quase patriótica. mas se volta as suas retinas para a outra ponta, o que verá é a diminuição. a perda da potência. do pior jeito, aos poucos. a desintegração do território. o ato de apontar é também um ato totalitário.

por que diz isso agora?

olha. aquela velha aponta um lápis sentada na praça. não deveria estar ali. um lápis pode ser apontado dentro de casa. um lápis pode ser apontado de qualquer lugar.

mas você mesmo acaba de exaltar o ato. se ela estivesse dentro de casa, como deveria, não teria essa reflexão. estranho momento, por sinal.

veste um vestido estranho. cheio de remendos. as cores não estão uniformes. olha. olha a meia. veste de um lado só. continua apontando o lápis. aponta e aponta.

aponta com certa frieza. é estranho o que algumas pessoas ainda são capazes de fazer em público. mesmo em um momento como esse. mesmo depois de tudo. não é o que dizem? num momento como esse. todo mundo perdendo o controle de tudo. tudo. e algumas pessoas continuam apontando o lápis. qual o objetivo final.

às vezes, faz um protesto.

não seja ridículo. protesta contra o quê? apontar um lápis. uma velha apontando um lápis, em um momento como esse. é uma merda.

às vezes, se prepara para anotar algo. um diário talvez. a lista do supermercado. a dosagem correta do remédio. Indapamida. 05 mm. Minoxidil. 02 mm. Nifedipina. 10 mm. pode ser uma carta de amor. um bilhete indignado. pode ser poeta. tanta coisa se pode fazer segurando um lápis na mão. até mesmo um bilhete suicida.

para todas essas possibilidades, porém, falta-lhe o papel. cadê o seu papel? sua caderneta. alguma superfície onde possa anotar.

pode estar a procura de um. escrever numa…veja. olhe agora. parece finalmente ter se cansado de apontar. está minúsculo. o seu lápis quase chega ao fim. quase.

em tempos como esse. que loucura. uma velha numa praça apontando um lápis.

coisa bonita é o apontar de um lápis.

você já disse isso. todos os detalhes. coisa bonita é o respeitar os momentos ruins. coisa bonita são as pessoas terem consciência.

quero falar com ela. vou descer. vamos. vamos os dois perguntar a ela o que faz apontando um lápis no meio de uma praça. curioso demais. aliás, que protesto mais maluco de uma velha. olhe pra cima. veja as janelas. quantas janelas somos capazes de contar somente se olharmos paralelamente ao asfalto? elas parecem cada vez mais perto umas das outras. não acha? parece que o concreto entre elas diminuem a cada dia. se desgastam. perdem a força. estão se tornando uma unidade. uma unidade de concreto.

você ficou maluco? não podemos simplesmente ir até lá só porque está tendo uma espécie de epifania. principalmente em tempos como esses. há dias não saio. deixo que eles façam isso por mim. são tempos ruins.

sim. ficamos aqui. é verdade. mas a velha não. deve saber de algo. algo grande se esconde em seu lápis minúsculo. ele está apontado. parece consciente de seu ato. tranquila na rua.

deixe que eles saiam por nós, menino. não perca a esperança dessa maneira. estamos indo bem por aqui. são os nervos. são os tempos.

eu já estou cansado. não são apenas mais os tempos. é a nossa vida. há quantos dias? quantos dias não pisamos no asfalto. presos no concreto. olhando o mundo por um ângulo só.

como pretende fugir disso?

do quê?

de olhar o mundo por um único ângulo. é impossível fugir. podemos sair por aí por horas. correr por dias inteiros. sem parar. subir e descer os arranha céus. escalar as mais altas montanhas do mundo. nada irá mudar. ainda assim iremos olhar o mundo por um único ângulo. é tudo que nos resta. nada vai mudar. fique em casa. não jogue simplesmente tudo para o alto. a velha está ali. algo me diz que logo saberemos o que faz na praça. são tempos difíceis.

não gosto de pensar em como tem razão. são dias. nada mudou. não temos mais futuro.

creio que nunca tivemos. eles saem por nós. fiquemos em casa. vamos. eu preparo um café.

02. Depois do ato.

já fecharam. não. não quero ver. deixa-o descansar. eu não sei bem. e como pode saber de uma coisa dessas? já disse isso. como pode saber que só os pulmões foram prejudicados. matuto dos infernos. esse ai já nasceu meio morto. todo quebrado por dentro. claro que sofro. mas isso não é da sua conta. ora essa. vá chamar o médico, por favor. todos já foram, graças a deus todos se foram. doutor, o que preciso fazer agora. a delegacia? por que precisaria fazer uma coisa dessas? assinar uns papéis, claro. problema nenhum. mas em tempos como esses. os médicos já liberaram. não é isso? não é só isso que é necessário para saber a causa da morte, é. os pulmões foram prejudicados. o matuto mesmo falou. está claro a causa da morte. saiu nos jornais: não é pra ficar nas ruas. dando mole pra ele. pra ele mesmo. que dia? hoje. não. ainda não. preciso ir pra casa. as meninas não comem há três dias. filhos? não. são as nossas gatas. quer dizer, são as minhas gatas. agora elas são apenas minhas. enfim. estão em casa. os vizinhos não podem cuidar. não entram em casa. tenho medo. devem ter revirado tudo atrás de comida. da última vez foram fundo no bueiro do quintal. pegaram uns ratos que moscavam por lá. foi sujo. é uma complicação. uma complicação. já vou indo. vou indo. meire há dias que não me liga.

saiu sentindo que não deveria ter tido aquela conversa. homem dos diabos. a faz passar vergonha até depois da morte. morte. o brasil tem escutado muito essa palavra. passaram a fazer a contagem por dias. 455. 677. 801. 920. 1002. engraçado como crescia a cada dia, ela pensava. mas as pessoas morrem todos os dias. engraçado. agora eles contam e passa até na televisão. foi para a casa sem se despedir dos parentes. pessoas que nem deveriam estar ali. mas elas foram. despediram-se do seu marido, colocando os cotovelos em seus ombros. uma de cada vez. não era mais permitido abraços. abolido também foi o encontro mão a mão. o tradicional entrelaces de dedos. ela foi. homem dos infernos. deu os primeiros passos na calçada e olhou para o outro lado da rua. ali costumava ser um ponto de encontro de jovens. vivia abarrotado de gente. aglomerações. agora não havia ninguém. talvez seja engraçado. agora não havia mais ninguém nas ruas. ela que sempre gostou da sensação do fedor da cidade. cruzava as esquinas em busca de engarrafamentos. sempre fazia caminhadas masoquistas pelos bairros, olhando pra baixo, contanto as rachaduras das calçadas, tropeçando nas pedras soltas do concreto, adiando a volta pra casa. agora não havia mais nada. nem ninguém nas ruas. tudo era espaço. em seu rosto, não sentia mais nada. não podia ter sentido. seu marido morreu ontem. e hoje foi o enterro.

03. O ato

meire ligou e disse: seu filho morreu. pegou ele. pegou a doença. não acreditava nessas coisas. menino novo. ruim de escola, mas bom filho. mais ou menos trabalhador. a televisão era ligada. sempre. mal se podia pensar com todo esse barulho. homem dos infernos. ela mesmo me disse. os hospitais estavam abarrotados. uma cara de fim de festa nas salas dos hospitais do país inteiro. não tinha sobrado nada. e seu filho morreu na esquina. misturando um último suspiro, como se tragasse o resquício do cigarro aceso há muito tempo. era sua derradeira força. a busca pelo último ar. estranho. esse negócio rouba o ar da gente é? como pode uma coisa dessa? já vou. está no fogo. no fogo, homem. como pode uma coisa dessa? um homem desse. meu deus. ela me explicou: o filho tentava ir pra casa depois de ter seu atendimento recusado. era só ter escutado o menino. mas que diabo de hospital. a enfermeira disse que não tinha como. que coisa mais estranha. como um hospital pode não atender? o menino se irritou. puxou meire pelos braços e atravessou a sala de atendimento com ódio. bravo demais. passou pelos corredores sujos. foi em direção às ruas. antes de colocar o pé na recepção, o ar acabou. teve sorte de andar mais alguns passos até a esquina. caiu. isso meire contando. achei uma coisa esquisita. meire não ia inventar uma história dessa. os mortos. eles não estão mais fazendo exames para saber a causa da morte. a morte. o que seria mais uma morte? todos estão indo. meire me disse mais uma coisa. mas essa televisão não me deixa pesar. meu deus. homem dos infernos. ela não me deixa pensar em mais nada. é enlouquecedor. ainda dói. homem dos infernos. ainda dói aquele da última vez. no banho, quando a água bateu no meu rosto, ainda senti o formato do tapa. o formato do tapa ainda está na minha cara, não é nada engraçado. desgraçado. mas você ria. caralho. eles não estão mais fazendo os exames. as pessoas estão morrendo. as mortes no país. não tem mais ninguém nas ruas. no fogo. a comida está no fogo. tudo que preciso está no meu bolso. vai, minha filha. anda com isso. puta que pariu, que barulho. que merda de barulho. que merda de homem. que merda de vida. pega, menina. dança. lembro que tinha dança. a gente se conheceu durante uma dança. isso. puxa. puxa. joga na mesa. o filho de meire era ruim na escola, mas bom menino. já foram oito vezes. homem dos infernos. oito vezes, no mesmo lugar, que barulho. as mortes hoje subiram ainda mais. o país já nem existe. como podem não ter atendido com o menino dentro de um hospital. com o menino dentro da porra de um hospital, manifestantes tomaram as ruas nesta quinta-feira pedindo o fim do isolamento. a volta do comércio. a vida normal. manifestantes. não estão mais fazendo exames. as pessoas morrem, mulher. elas morrem e eles agora nem querem mais saber a causa. manda pra cova. perfeito. isso. manda. pega. agora pega o outro. o outro. estou velha. pega o outro. joga na mesa. que barulho é esse? o jornal acabou. ele vai levantar. anda. pega o prato, a colher, o feijão, o chumbinho, o apontador, raspa o chumbinho, joga o arroz, a carne. ele se levanta. aponta o chumbinho, empurra ele. joga mais pra dentro. afunda. afunda no apontador com o lápis. acabou o jornal. lá vem ele. um minuto. acaba de ficar pronto. vou tirar do fogo. agora mesmo. voltou. aponta o chumbinho. larga o lápis. aponta. mistura. da pra ele. volta. aponta o lápis. aponta. homem dos infernos. come tudo. você não passa de um número. agora.

aponta. aponta. aponta o lápis. assiste a derrota do país. acalme-se:

a novela já vai começar.

Danilo Brandão (23 anos) é redator publicitário e jornalista. Publicou recentemente seu primeiro livro de contos Os minutos que me restam (BAR Editora, 2020). Além disso, tem textos publicados em revistas, sites e portais de literatura.