sem olhar a quem, de Neno Moura

Saiu eu e o Doca pra manifestação. Ele veio aqui em casa uma hora antes e a gente matou o tempo vendo uns bandido se foder no Youtube. Taí uma coisa que faz o meu dia passar voando, assistir uns filho da puta se dando mal. Melhor que cinema. É o tal negócio, quando a presa tá armada, o predador dorme com fome.

A gente ia saindo e o Doca pra mim não preparou nenhum cartaz, nada? Eu virei pra ele e ele já foi se encolhendo. Que cartaz o quê cara, tu acha que a gente vai ficar que nem duas bicha segurando cartazinho, tipo programa da Xuxa? a gente vai com a cara e com a coragem porra, meu cartaz é essa camiseta aqui, relaxa que lá vai ter cartaz, faixa, essa porra toda. O Doca é meio lerdo, mas tem boa índole.

Lá não tava como eu esperava. Tinha menos do que o anunciado, mas a gente sabe que o trabalho é de formiga. Juntando com o resto do país dava uma cacetada de gente. Tinha uma faixa grandona que o pessoal abria quando fechava o sinal. Isso incomodou um bocado de comunista e teve uns que quase saíro na mão, mas o pessoal deu uma segurada porque sabe que isso queima o filme. O Carlos Alberto comandava o pessoal dizendo calma que vai chegar a hora deles. Ele é o cabeça do grupo. Esse cara é mito.

Eu desde a hora que cheguei fiquei cismado com um negócio que ninguém tinha notado. Eu conhecia quase todo mundo que tava ali, se não pessoalmente, pelo zap, mas tinha um que eu nunca tinha visto, nem nos outros dias nem no grupo. O cara tava sozinho, sem cartaz, sem nada, só filmando com o celular na mão, tava de calça verde e jaqueta, mas de camisa vermelha por baixo. Era o único ali de camisa vermelha. Ninguém mais tava de camisa vermelha. Não que não possa, mas é uma questão de bom senso caralho!. Isso que eu vou falar não tem nada a ver, mas o cara ainda por cima era preto. Tipo, tem uns meio preto no grupo e tudo, qualquer um pode fazer parte, desde que feche com as nossas ideia, mas ali era o único preto-preto mesmo. Tem um monte de misturado ali, essa putaria que é o Brasil, né? o Doca até tem cabelo ruim, isso aí não tem nada a ver, mas eu fiquei cuidando, o cara tinha todo jeito de infiltrado.

Eu cutuquei o Doca e disse se liga naquele cara ali, estranho né? O Doca entortou a boca pra baixo, como ele faz sempre que não sabe o que pensar. O bicho é devagar, mas eu dou um tranco e ele pega. A partir daí eu não me liguei mais na manifestação, fiquei só de olho no negão. Lá pelas tantas, anoitecendo, o cara guardou o celular no bolso e foi se afastando do grupo, sem se despedir de ninguém nem nada. Parou na faixa pra atravessar a rua. Quando a luz de pedestre abriu eu chamei ô Doca, vamo atrás do cara.

Chegamo na faixa bem na hora que fechou o sinal pra gente. Beleza, deixa o cara tomar distância. Doca, abre a mochila aí e vê o que tem dentro. Ele abriu e meio que se espantou. Eu disse é só pra defesa, enquanto não tem porte de arma nessa porra. Abriu o sinal. O negão já ia dobrando a esquina falando no celular. Eu disse apura Doca. O cara virou a esquina e entrou pelo lado do carona num carro estacionado. A gente parou e ficou esperando o carro arrancar. Não arrancou. Tinha outro cara no volante. Eles ficaro ali um tempo conversando, de repente se abraçaro e não se soltaro mais. Puta que pariu, Doca! O negão ainda por cima é viado! Aí é que me deu um nojo daquele cara, deu vontade de ir pra cima e tirar os dois do carro na porrada. Mas aí o viado saiu e o carro arrancou. Eu falei pro Doca, vamo tirar a limpo isso daí.

Ele tava passando na frente de um recuo onde tinha a lixeira de um prédio. A gente apressou o passo e chegou logo atrás dele, daí eu chamei ô parceiro! Ele se virou, eu perguntei o que ele tava fazendo lá na manifestação. Ele disse que tava só acompanhando e eu disse e tu foi lá de camisa vermelha só pra provocar. Ele disse nada a ver cara, e eu não me chama de cara que tu nem me conhece. Ele disse calma amigo, e foi botando a mão no meu ombro. Eu disse calma é o caralho! tu não sabe que preto não põe a mão em branco? e abri a testa dele com um soco que chegou a doer a minha mão. Ele caiu desnorteado e eu tirei o cassetete da mochila e já fui descendo a porrada na cabeça, na perna, nas costas, na costela, onde dava eu acertava. Nisso o cara já tava que nem um boneco no chão, eu disse pro Doca vamo comer o cu desse negão. O Doca já ia tirando a calça do cara! O Doca tem problema na cabeça, só pode. Eu disse ô Doca, tá maluco ou tu é viado? ainda se fosse cu de branco, mas vira ele aí que eu vou enfiar o cassetete no cu dele. Aí eu só empurrei o cacete na bunda dele, por cima da calça mesmo, que eu não tava a fim de sujar de merda. Falei pro Doca vamo parar com essa porra que ele pode se apaixonar, e a gente riu pra caralho. Eu dei mais umas bicuda na costela dele, e ele nada, tava desmaiado ou sei lá o quê. Eu puxei o Doca e disse chega, vãobora. Quando a gente se afastou o Doca falou que ele parecia um saco de lixo lá jogado no chão. Eu disse é Doca, um saco de lixo preto. E o Doca riu. Eu tava orgulhoso. A gente fez a coisa certa.

Neno Moura nasceu em Florianópolis em 1983. Ele mesmo é quem se apresenta aqui, mas finge que é outra pessoa. Finge que é músico para não trabalhar. Finge que trabalha para se ocupar. Finge que se ocupa para não pensar. Neno Moura não é escritor.

Tem textos publicados em Jornal RelevO, Revista Libertinagem, Revista Gueto e Jornal Ô Catarina!. Tem doze títulos para um livro de contos que não publicará. Escreve (e apaga) esporadicamente no blogue Palavra Provisória. Pelo selo editorial da revista Gueto publicou o e-book lagoa miúda, livro dezesseis da coleção #breves.