o tanto que vale a minha vida, de Eduardo Salgueiro Peretti

Na plaqueta se lia “Limonada grátis. Por favor, sirva-se”. Sem pensar duas vezes, o rapaz pega a jarra e enche um copo. Não é que gostasse de limão, mas não resistia a uma boa oportunidade. Espia a coleção de pratos decorativos pintados em temas florais, coisa mais cafona. O tipo do bibelô que você encontra na casa dos seus avós. Mas ao preço de um real cada, conclui duas coisas sobre quem está organizando a venda: Primeiro, que é uma velha. Sim, uma velha e não um velho. Só uma senhora idosa acumularia tantos querubins de porcelana, para não falar dos bordados de crochê. E por fim, e mais importante, a velha deveria estar num baita sufoco para apreçar seus bens com tanta modéstia.

Você conhece o lugar. Já viu vários lugares assim. Um sobrado de dois andares com a varanda escancarada, convidativa. Grama verde, caixa de correio e bebedouro para beija-flores. O sonho suburbano. Ele veio gingando, atraído pela curiosidade. Confere a miscelânea de tranqueiras expostas. Não encontra mais ninguém, está só. Senta no sofá de três lugares e descansa os pés na mesa de centro. A etiqueta diz que o conjunto valia duzentos e setenta e cinco reais. Na frente dele, um televisor de cinquenta polegadas com o preço módico de outros cento e cinquenta. Aposto que consigo baixar para cem., pensou.

Parece que a casa está toda montada do lado de fora. A cama de casal sobre o gramado. Um tesouro de jatobá maciço e cheio de entalhes. Peça em extinção. Agora apenas tristes imitações industriais em chapas de compensado. Coisas mais práticas, e sem história alguma. A palavra cai bem, história. Tudo ali parece contar a sua própria. Feitas com o mesmo material nobre, duas mesinhas de cabeceira idênticas. Cada uma carrega um abajur na cabeça. O quarto havia se instalado no jardim. Armário e gaveteiro alinhados à disposição do cômodo. Colchão e travesseiros desnudos, todavia. As fronhas, lençóis e cobertores repousavam dobrados com esmero e dispostos em caixas sobre a calçadeira.

Nota que alguém tinha puxado a extensão para fora da casa, de maneira que aperta o controle remoto como um velocista. Futebol, novela, jornal, futebol. Beberica a limonada, faz careta e atira o copo fora., Gostou de alguma coisa, querido?, perguntou a senhora na cadeira de rodas, que ele nem tinha visto chegar.

Opa, boa tarde! Tava só dando uma espiada. Legal a tevê., Sim, é uma boa televisão. Sai por cento e cinquenta, baratinho., Não faz por cem?, Cem está bom sim, pode levar por cem.

Maravilha, e se vier o sofá e a mesinha juntos, fica tudo por duzentos e vinte e cinco?, ele pensa que poderia reformar seu apartamento., Ai, você é um danado, rapazinho., A senhora tinha uma compleição magra e quebradiça. Mesmo sendo idosa, usava a cabeleira longa e branca, o que lhe conferia uma aparência estranha de hippie., Posso fazer sim.

Ela diz que ambos deveriam beber alguma coisa pra brindar à venda, estão só os dois ali mesmo. Ninguém para incomodar. O rapaz confessa que não é fã de limonada. A senhora então pede para ele ir buscar um vinho que estava na mesa de jantar, por conta da casa. A mesa era outra maravilhosa antiguidade, que fora arrastada até a garagem. Sobre a mobília, vê expostos à venda utensílios de cozinha, um relógio de parede e pinturas a óleo. Uma delas exibe uma bailarina alongando a perna na barra, o corpo arqueado para frente. Ele percebe semelhanças entre a moça na tela e a velha senhora, se ela fosse mais jovem, loura e de pernas torneadas. Volta com uma garrafa de vinho do porto e duas taças pequenas.

Saúde, Dona…, Isadora, seu danado, mas deixe o Dona em casa, vá., Clóvis, prazer. Então… saúde, Isadora sem o Dona., ele pisca e ela ri.

Os cristais tilintam e a bebida sobe ligeira à cabeça do rapaz.

Ela diz que seria bom pôr uma música para tocar. Liga um jazz na vitrola. O rapaz cobiça o aparelho.

Também está à venda, pus tudo à venda, faço esse por cinquenta junto com a caixa de discos., Pago vinte., Ai, seu danado…

Clóvis vê uma penteadeira e uma arara. Tem de apertar os olhos para ajustar o foco. Estranho, ele sempre teve vista perfeita. Enche outra taça e bebe com gosto, ao som do saxofone que sopra da vitrola. A senhora se levanta da cadeira de rodas. Nega a assistência do jovem com um gesto de mão., Bobagem, bobagem, uma mulher na minha idade pode ter orgulho uma vez ou outra., lança a juba para trás. Olhando de perto, ela não parecia tão velha, nem seus cabelos todos brancos. Umas madeixas platinadas de louro que o rapaz acha, a partir de agora, muito bonitas.

Sabe o que devemos fazer? Devemos dançar. Isso, dançar. Não seria revigorante?

Ele hesita, mas já foram três taças e então Clóvis põe a mão na cintura dela. Sente fineza nos contornos. É mais firme do que ele esperava, parece cintura de moça. Ela veste uma saia longa indiana, blusa justa e uma echarpe. Seus olhos são azuis-cobalto. Ele a puxa para perto. Sente tontura, uma fraqueza nas pernas, nos ossos. Que diabos, o homem é jovem e cuida do corpo. Tem saúde de ferro. Deve ser o vinho, essa vertigem. Vinho do porto é coisa traiçoeira, é sim. Isadora dança. Uma dança fluida, envolvente. Às vezes ela fecha os olhos e ele se pergunta em silêncio no que ela deve estar se lembrando. Ele tenta pensar os pensamentos dela, como quem conduz a dança. Ele pensa que mulheres na idade dela passam mais tempo recordando do que vivendo. Aí depois quando elas não conseguem mais fugir para suas memórias, fica tudo mais nublado, leitoso. E então não há mais pra quê viver. A gente perde a vida junto com as memórias. A venda de garagem dela é cheia de lembranças. Clóvis pondera sobre as coisas que possuímos, as coisas com as quais nós realmente nos importamos. Coisas assim carregam um pouco de nós mesmos. Uma parte de nossa história. E comprar isso de alguém que viveu essas histórias, seria comprar para si um tanto da vida dessa pessoa. Ele sente os dedos dormentes, a vista ameaça escurecer.

Por que, Isadora?, ele pergunta., Por que pôr toda sua vida à venda assim, pra um desconhecido?, A moça abre os olhos, Clóvis se encanta com seus pés de galinha, são muito charmosos os pequenos pés de galinha que ressaltam o cobalto dos olhos., Não é minha vida, meu querido, são só umas coisinhas que eu juntei aqui e acolá., Mesmo assim…

Eles rodopiam na grama. Por mais de uma vez o rapaz sente que perdeu o ritmo, ouve o joelho estalar, a coluna arqueia. Mas ela não parece se importar, linda e juvenil.

Eu é que não morro que nem Faraó, enterrada junto de meu cabedal., ela ri, um riso jovial. Parece uma adolescente rindo., Nem exército de terracota, já pensou? A gente chega e sai desse mundo nu, meu anjo., E ela provoca., Vai querer mais alguma coisa?.

Vou sim… quero tudo. Faça um preço bom. Vou arrematar tudo, tipo venda de atacado.

Ela acelera o ritmo da dança, Clóvis acha difícil acompanhar. Parece ter a coordenação de um idoso. Isadora enrubesce., Você poderia me beijar, querido? Faz tanto tempo desde a última vez que… sabe?, Um beijo e você me faz um desconto especial pra eu levar tudo?, Ah! Seu danado…

Depois do beijo ele sente que vai enfartar. Encerra a dança, precisa tomar um fôlego.

Faça uma proposta., ela diz., Diga aí você o tanto que vale a minha vida.

Os cabelos dela são louros e vastos, o corpo é esguio, as pernas são torneadas. Pernas de bailarina. São perfeitas a suas pernas, e a sua idade também. Não há uma ruga, uma prega. Pura beleza e juventude. A cabeça de Clóvis gira, sua vista falha, os ombros pesam.

Mil… Não! Quinhentos. Eu levo tudo por quinhentos, é pegar ou largar.

Ele tira a carteira do bolso de trás da calça com as mãos trêmulas. Pesca três notas de cem e mais duas de cinquenta. Diz que no momento é tudo o que dispõe, mas que vai ali no caixa eletrônico, vai num pé e volta noutro, rapidinho, pra sacar os cem reais faltantes. Não demora nada e num instante fica todo mundo feliz.

Ela encosta o dedo indicador nos lábios dele. Guia-o até a cama. A bela cama estilo imperial de madeira de jatobá, cheia de capricho, história e vida. A cama que dentro em breve seria dele. Ele se arrasta para um dos lados do colchão. Ela o guia para o outro. Aquele deveria ser o lado dela, ele pensa. Os olhos azuis-cobalto ficam lhe avaliando deitado ali, no lado dele. O que será que veem? Um corpo curvado, cansado e frágil. O corpo velho de um homem provisório. A que corpo deveria pertencer este lado da cama antes dele, imagina Clóvis. Tentando viver na vida dela. Em quem ela estaria lembrando, quem ela havia perdido. Gente com muita idade, muita coisa e muita história já perdeu muito, é assim que funciona.

Clóvis tosse seco e olha para cima, percebe que está anoitecendo. Já se podiam ver algumas estrelas no céu, ele tem dúvidas que amanhecerá. Isadora pula em cima dele. Puxa a saia até as coxas e deixa a extensa cabeleira loura afogar o rosto do velho. Ele sente um tremor, um medo genuíno de ser mesmo sufocado por aqueles cabelos dourados.

Pela manhã, ao acordar, ele ainda consegue ver a moça, sentada do lado dela, prendendo os cabelos num coque. A respiração dele está pesada. Tenta falar, mas a voz não sai. Ela puxa uma caixa de sapatos debaixo da cama e tira de lá um par de sapatilhas de ballet. Troca as sandálias que veste pelo calçado de dança e entrelaça as faixas cor-de-rosa ao redor do tornozelo.

Fico com estas., diz a jovem para o senhor enrugado e lânguido sob as cobertas., Compro-as de você pelos cem que ficou faltando, é um bom negócio., Ela tira as três notas de cem e duas de cinquenta da carteira dele e tasca-lhe um beijo na testa. Clóvis sente um espasmo involuntário, seguido de uma dor aguda no peito.

Seu danado., ela diz, e vai embora dali com passos macios, assobiando uma música que Clóvis não conhecia.

Não era de seu tempo.

Eduardo Salgueiro Peretti nasceu em Recife-PE e é formado em Psicologia. Gosta de escrever contos e poesias.