Tinha praticamente certeza de que Lucinda — a mula — não se importava de receber visitas. Isso, isso mesmo, leva a amada para passear, Lucinda, para amar, para se infectar e infectar sua velha. Dois semelhantes podem se infectar com tudo: vida, morte, vidinha e mortezinha, tanto faz. Burrice também vale. Ai, não posso deixar a raiva da tua burrice piorar a lesão interior, isso não consta no script.
O mal do século? O mal do século é a burrice, a cegueira, a corrupção (isso mais parece panfletagem de político) — não posso deixar a tristeza piorar a lesão, tenho que viver ainda, antes mesmo de inventarem a vacina. Depois dessa vacina, terão de inventar outras, já tinha dito Nostradamus, no metafórico — este é o grande problema: quase ninguém consegue interpretar metáforas, coisa de gente que pensa — raro — pensar hoje em dia é um porre da porra, piora as lesões. Então não pensa, minha filha, não pensa não, que a aposentadoria ainda demora e o ócio causa dor nas articulações.
Isso tudo poderiam ser pensamentos de Teresa, caso ela soubesse pensar, mas então que sejam pensamentos avulsos de algum ser emocionado que escreve por linhas tortíssimas, um deus que se considera deus de tão arrogante, mas que só assiste a tudo de braços cruzados — afinal, que culpa tenho Eu, se já avisei de tudo o que é imoral, ilegal ou engorda. Outro nome que lhe dão: contador de histórias. Histórias bonitas como aquelas de gente vencedora. Definitivamente essa história de gente vencedora é um pensamento de Teresa.
Por que se chama Teresa? Coisa de pais que escolhem os nomes dos pimpolhos como se essa escolha fosse premonitória. Coisa de pais, ah, os pais e as mães de Freud, dissimulação do amor perverso, amor disfarçado daquilo de não amar ou amar de longe.
Teresa é um nome que muitas vezes acaba presa por assassinato.
Então essa criminosa foi até a grade da janela que dava para o pátio das inmates — na televisão era possível aprender inglês e até falar fluentemente, se houvesse boa vontade — e respirou ainda pensando em Freud e nos complexíssimos complexos. Aquela história do Édipo ficaria mais triste se Jocasta não tivesse pernas, fosse imóvel — coisa cruel de se dizer, será que a crueldade piora as lesões? Mas nota a mãe do Coringa, que no fundo era doidão. Ou ficou doidão depois de descobrir que sua Jocasta é que era a doidona que tinha fornicado com o pai de Bruce? Willis Wayne. Ou não tinha? Ficou meio confusa essa parte na cabeça.
Lá fora, as detentas andavam em círculos ou estavam recebendo visitas das pessoas que supostamente, como Lucinda, não acreditavam. Em quê?
Tu sabes.
Usavam diminutivos para amenizar impactos negativos, aquelas coisas de afetividade que a língua proporciona. A língua de Lori, a língua de papis e a língua do moço infectado, tudo caminhava para a língua. Já comeste língua de boi? Nojento e delicioso — a aditiva tem valor de aditiva, isso para quem estudou direitinho a gramática — nomenclaturas que impressionam e amedrontam — e a voz da professora nunca mais desaparecia; Teresa adorava duplos travessões — estilística complexa e sofisticada — mas nunca qualquer outro duplo, porque em dupla ficava mais difícil. Muito hermético, muito subjetivo, professora?
Certo, vamos lá à história de Teresa.
Essa moça seria o quê? Definições — nova rica, classe média, emergente resultado da meritocracia desmerecida ou pertencente à raça reptiliana — definições quaisquer dificilmente poderiam definir Teresa, mesmo porque definir alguém pela raça ou classe social seria coisa de comunista. Mas Teresa saiu do nada, fez curso supletivo e conseguiu chegar a líder dos vendedores de uma empresa importadora de acessórios eletrônicos que vinham da China. Como ela se familiarizou com a teoria freudiana? Viu numa novela alguns termos e julgou bonito. Procurou na internet, achou os textos curtos que explicavam mais ou menos essas coisas de filho querer trepar com a mãe, mas não admitir, resumindo. O curso de vendas também foi mais ou menos assim, bem resumido, e era tudo o que a senhora Lin-Chou, líder dos líderes, precisava para enriquecer às custas de Teresa e de seus colegas. Da gramática, além da voz da professora, ficaram as estratégias da função apelativa.
Bonita história: luta diária, de sol a sol, nada de vadiagem, o ócio era coisa do demo articulado. Teresa sempre dizia que era só ver o exemplo dos artistas. Todos morriam cedo porque vibravam na sintonia do mal, aquelas coisas que pensavam podiam causar câncer, aids, loucura e a loucura vinha do inferno. Levou algum tempo para chegar a essas conclusões, muita leitura de textos curtos e oitivas dos programas super didáticos das aulas à distância. Vídeos nem sempre, ainda saía caro sinal de wi-fi. Desse jeito então decidiu que ninguém poderia acusá-la de não se dedicar a estudos de diversos segmentos, segredo do sucesso no empreendedorismo.
Essa moça seria o quê? Ser humano tipo normal, como diria o robocop? Tão normal, que conquistava o direito de, em um momento de insana lucidez, praticar a justiça de roubar dos mais ricos para dar ela — mais pobre — o ouro do oriente? Teresa não roubou ouro oriental, mas ainda sob o efeito da impossível lucidez, jogou um ser escada abaixo — ah, se eu fizesse tudo por vontade, jogaria milhões, escada abaixo; alienígenas, janela do quinto dos infernos, avião. Mas nem sempre. Isso seriam os pensamentos do deus onipresente de braços cruzados.
Jogou o gerente pela escada abaixo, enquanto ele recitava a fórmula daquela tal de hipotenusa, nome de mulher. Se tivesse uma filha, dar-lhe-ia o nome de Hipotenusa; Hipotenusa de Almeida Shultz, o pai precisaria ser alemão — alemão é tudo, soava riqueza e glória, até mesmo um pouco mais de inteligência, embora coisa desvalorizada atualmente, sem falar que é chato pra caralho — e o apelido abreviado da amada neném soaria carinhoso: Hipoquita, tendendo à fonética da língua castelhana. Claro que muito em breve também a jogaria pela janela.
Você é louca de acreditar nessas coisas que ele diz. Mas Teresa acreditava. Fim da sujeira, riqueza e glória, extinção total daquela exploração de comer num refeitório fedendo a chulé de operários, fim da marmita, nada disso, coisas do passado. Amor, muito amor e conexão transcendente, Robin Hood estava morto e enterrado.
Vamos lá à história de Teresa. Para ela, a quarentena não fazia diferença, prisão era prisão, com grade, sem grade, com chulé, sem chulé, com lesões ou sem lesões. A única coisa que realmente fazia diferença era o assassinato, o roubo e a morte de Robin Hood. Por que empurrou o gerente escada abaixo? Só Teresa sabia o quanto tinha empurrado aquele ser irresponsável, cujo progenitor tinha há anos prometido que grande homem haveria de ser, tanto faz se infectasse a digníssima esposa, a filha magrela e todas as moças que espirravam jatos de comoção. Tanto faz, tanto fazia, agora eram várias vozes, como todo povo que tinha várias vozes.
Pois bem, Teresa tinha sido humilhada. Humilhar uma pessoa pode levá-la ao assassinato, murder, lucidez momentânea. Teresa então empurrou. Por isso, dizem as vozes do povo: humilhe até certo ponto. Se passar desse ponto, pode ocorrer um crime gravíssimo. O gerente tinha noção disso exatamente como os candidatos a ingressar no mercado de trabalho têm noções de espanhol. Assim como um polícia mais ou menos sensato determina de modo bem positivista não bato na cara não, isso dá ruim. Todo mundo tem seu preço, sabia? Ah.
Ele puxou demais a corda, não encontrou o equilíbrio, subestimou a humilhação; daí arrebentou e ele caiu, rolou escada abaixo feito um caqui maduro. Por que caqui, Teresa? Porque aquele caqui mole e maduro explode, feito um tomate. Um tomate sempre conta com testemunhas oculares do crime e dessa vez não foi diferente. O mais diferente do crime: a motivação, que foi passional. Quando se fala a palavra gerente, já todo mundo pensa ah, matou por dinheiro. Gente apressada, não pensa direito, não analisa a proposta, não delimita o ponto de vista e vai logo recortando o tema conforme costuma sonhar todo dia.
Não, não.
O gerente comentava certa vez num almoço com os vendedores mais antigos e, no comentário, deixou escapar a palavra comível. Outro interrompeu e disse comestível, animal, é comestível que fala. Daí o gerente corrigiu mais ainda: comestível a gente diz pra comida. Então riam, gargalhavam, felizes demais com a idiotice toda das mulheres não amadas e por terem aprendido tantas coisas nas aulas de gramática, naquele mundo distante do mercado de trabalho, quando achavam que tudo podia ser. Orgulhosos, prepotentes, grandes pais de família que já eram ou haveriam de ser em breve, caminho traçado e magnífico. No fundo, no fundo, já possuíam a vontade de humilhar. Nunca tinham sido humilhados, não se tratava de vingança, mas era a simples vontade, o simples prazer, que culpa? Talvez a genética explique, como eles mesmos tantas vezes procuraram explicar pela genética, porque a genética era objetiva, nada tinha a ver com essa tralha toda de humano: oi? Devia existir algum ressentimento contra Teresa, com origem nos primórdios da humanidade. Ressentimento fica na memória genética e acaba transmitido de geração em geração; talvez Teresa tenha, na época da Revolução Francesa, humilhado o gerente e ele nunca mais esqueceu. A memória alcançaria o paleolítico? Tudo é talvez, gente do bem.
A humilhação é assim: o gerente comeu Teresa umas três vezes. Deve-se mencionar o pequeno detalhe de que o gerente vivia maritalmente com outra mulher — sem graça, diziam mais na intenção de consolar Teresa — e inclusive ela estava embuchada, feliz com a missão mágica de se tornar mamãe, que lindo isso. As vozes do povo aconselhavam: cuidado, menina, apaixone não, é só carência tipo genética, todo homem que vive maritalmente com uma mulher embuchada fica carente tipo genética.
Não generalize sem argumentos concretos, dizia sempre a voz da professora, quando tentava ensinar a estrutura do texto dissertativo. Isso se remete ao preconceito e, por conseguinte, ao desrespeito dos direitos humanos. Mas não estavam generalizando, ninguém de verdade afirmou que todo homem fazia assim de comer fora quando sua dona fica embuchada, ainda mais por simples carência tipo genética. Só o gerente fez isso. Três vezes.
Então Teresa apaixonou, porque três vezes ninguém merece. A primeira começou com um jantar no restaurante chinês preferido da senhora Lin-Chou, era a confraternização de fim de ano. Comeram água-viva com cheiro verde, tomaram todas as biritas necessárias para o xô inibição. Sabe aquela coisa de todo mundo acabar indo embora e só sobrar Teresa e o gerente? Pois é, gente do bem, o demo é articulado. A segunda vez foi no happy hour, no dia que atingiram a meta do mês. Felicidade transbordante. Todos acabaram indo embora antes, igualzinho. Teresa ria até mesmo pelo rim, tudo ria nela, vários risinhos do povo no sistema respiratório, digestório, reprodutório, endocrinório, ório-ório-ório, ai que delícia, Teresinha, ai que gostoso gerentezinho! Teresinha, você merece tudo desse mundo cão: um castelo enorme, roupas caras, a melhor comida e a melhor bebida, vou sustentar seus luxos mais luxuosos, minha mulher Teresa, vou te assumir, meu amor, você vai parar de trabalhar nessa imundície, seu lugar é no meu castelo, minha rainha, mas não para de fazer isso daí que você tá fazendo.
Teresa esperava aquele grande acontecimento que tinham lhe ensinado, o grande amor. Gerente esperava o pimpolho por nascer. As vozes do povo comentavam sabe-se lá em que momento passou pela cabeça de Teresa que aquele homem falava a verdade na hora que estava sendo engolido. No máximo, não falaria nada, mas verdades pelo amor de deus, é ruim, hem.
Pois não é que, na terceira vez, ele já parecia menos carente tipo genética e mais preocupado em continuar com a vida de sempre? Nem mesmo beberam — direto pro fuc-fuc. Hashtag. Eu avisei, Teresa. Como uma moça tão inteligente pode ser tão ingênua? Esqueceu de tudo o que o gerente é, a vida que leva até hoje, não é possível, quantas vezes na história da humanidade.
Ah, mas ele prometeu que acabaria com a corrupção.
Começou com as negativas, conforme previram sabiamente as várias vozes do povo: vamos hoje? Ah, preciso terminar os relatórios da semana. Vamos hoje? Ah, hoje tem festa de aniversário da cunhada. Vamos hoje? Ah, minha mãe quer visitar dona Otacila.
Até que apareceram as lesões e o médico disse que sexualmente transmissível era pouco. Teresa precisava avisar, atitude cidadã. Mas o que o gerente fez:
Quê? Ficou louca? Nada a ver com as tuas lesões.
É o que daria para reproduzir, o resto seria para imaginar. Pois então vamos imaginar o que um homem gerente prestes a mergulhar na mágica de ser pai diria para a amante numa situação constrangedora dessa, a ponto de a amante nascer tanto ódio de empurrar escada abaixo. Teresa nunca tinha sentido um ódio tão gostoso, esse de matar. As pessoas viviam matando e raras vezes não tinham ódio, mas Teresa nunca. Foi só dessa vez. Sempre que sentia ódio de matar, quando pensava na pessoa morta, ficava com dó. Foi só dessa vez que não.
Não sei o que me deu, não pensei, só senti que, se empurrasse o gerente escada abaixo, ele explodiria como um tomate-caqui-maduro. Daí me deu vontade de comer um prato enorme de espaguete.
Comível ou comestível — eis a questão.
Denise Sintani é professora de literatura e redação, formada em Letras e mestre em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo. Livro de contos publicado pela Editora Multifoco, em 2014, Cartas de Zi, e seis outros de publicação independente pelo grupo Amazon, em 2015: Caricaturas, Contos de espanto, Contos e crônicas, entre outros. Contos selecionados em concursos promovidos pelas editoras Zouk e Nosotros Editorial, integrando as antologias Novas contistas da literatura brasileira (2018) e Golpe: antologia manifesto (2017), respectivamente. Poemas, artigos, outros contos e crônicas publicados no blog literário: https://escritoscontemporaneos.wordpress.com/