A cama, o cobertor e o travesseiro formam um casulo. Exercem uma força inexplicável sobre e sob o corpo. Embora seja possível rolar de um lado para o outro dentro dos limites do colchão, não consigo reunir forças para erguer o tronco. Nem vale a pena tentar. Entendam, não há nada de errado comigo — a questão não é a capacidade de sair daqui: poderia muito bem me levantar e ir até a cozinha, por exemplo. O problema é a vontade — ou melhor, a falta dela. É como se houvesse uma camada invisível prendendo o corpo. Uma camada que suga toda e qualquer possibilidade de interação com o mundo ao redor. Estendo as mãos e quase consigo tocá-la. Quente e maleável como um cobertor. Quente e maleável como o cobertor que cobre minhas pernas. Um sintoma inconsciente de uma constatação bem consciente.
Nem sempre foi assim. Juro que tentei ser um prisioneiro mais ativo durante as primeiras semanas de quarentena. Procurei na internet maneiras de exercitar as pernas, comecei a estudar Espanhol e até organizei todos os livros na estante, tamanha era a vontade de resistir ao sedentarismo naturalmente propiciado pelos longos períodos em casa. A distância do mundo externo era um mal a ser mitigado. Entretanto, conforme os dias foram passando, o magnetismo da cama foi se tornando mais potente. Não demorou muito para que compreendesse sua origem. A questão é: pra quê? Pra que encontrar novas atividades caseiras? Pra que atenuar o isolamento? Se não podemos sair de casa, não sair da cama parece o próximo passo lógico. Além disso, o que estaria perdendo ao fazê-lo? Desde que o isolamento começou, consegui organizar as tarefas cotidianas de tal modo que, com exceção do banho e da comida, posso muito bem ficar deitado o dia todo. O trabalho de escritório que agora realizo à distância requer apenas um computador — repousado sobre as coxas — e uma boa conexão de internet. Bed office. Assim, ficar deitado aqui sentindo essa camada de veludo conter meu corpo não parece algo necessariamente ruim.
Dizem que devemos tirar boas lições da pandemia e do fato de estarmos presos em casa. Copo meio cheio? Talvez; mas acho mesmo que aperfeiçoei uma habilidade crucial em meio a tudo isso: a possibilidade de existir e até mesmo agir como um ser social deitado na cama. Há aplicativos para isso. Sim, o encontro semanal com os amigos agora é virtual. A distância entre os corpos não diminui a experiência em absolutamente nada: as pessoas são as mesmas, a marca de cerveja é a mesma e os assuntos são os mesmos. Até brindamos pela webcam! A não-presença é apenas um detalhe. Uma daquelas instâncias em que a alteração da forma em nada prejudica o conteúdo. O mesmo poderia ser dito em relação a quase todas as adaptações que tivemos de fazer nessa quarentena. Se pararmos para pensar, não faz sentindo associarmos uma visão negativa à distância. Do ponto de vista moral, não há nada de errado com ela. Trata-se apenas de uma outra maneira de viver. Sim! Viver à distância: a metade do meu copo meio cheio! Em lugar nenhum está escrito que a vida deve ser vivida em pé e ao lado de outras pessoas. É isso! Deveria fundar um movimento, uma religião, um culto. “O deitismo”. “O camismo”. Algo assim. Rejeitamos radicalmente a obrigação de ficar em pé! Rejeitamos radicalmente a ditadura da presença! Rejeitamos radicalmente a imposição da proximidade física! De agora em diante, tudo poderá ser feito à distância! As relações sociais e as relações de trabalho terão de se adequar a essa nova e excitante lógica!
É claro que ideias tão radicais assim sofrerão muita resistência por parte dos incrédulos, até mesmo dentro de nossas casas. O colega com quem divido o apartamento, por exemplo, não entende o comportamento que tenho exibido nas últimas semanas. Diz que justamente por estarmos isolados é que devemos dar mais valor à época em que ainda podíamos nos abraçar. Diz que o ser humano não nasceu para viver trancado. Nada mais natural, já que desde pequenos somos ensinados a procurar a companhia dos outros, a privilegiar o olho no olho. Pois eu vos digo, irmãos, não caiam na tentação da companhia! Fujam dos olhares ameaçadores. Esqueçam a época em que ainda tínhamos de nos locomover usando as pernas. Tais tempos sombrios serão conhecidos no futuro como a verdadeira pré-história da humanidade. Pensem bem: sempre reclamamos da qualidade de vida nas grandes cidades, não é mesmo? Já faz tempo que a palavra estresse entrou no nosso vocabulário. Finalmente a solução veio em forma de vírus! O deitismo/camismo chegou para libertá-los das horas perdidas no trânsito, da violência, da poluição! O futuro é a distância, o futuro é uma sala virtual habitada por inúmeras miniaturas de webcams onde cada avatar espera sua vez de abrir o microfone! Tudo de maneira ordenada e harmoniosa! O futuro é brilhante!
Já está na hora de reabastecer a dispensa. É a sua vez de ir ao supermercado. Feita uma onda, a voz do colega invade o ambiente, interrompendo a revolução que desenhava em minha cabeça. A intensa alegria de uma lembrança inesperada toma conta do meu ser e tudo parece mais colorido, mais vibrante. Abre-se o casulo. Respondo alegremente, oferecendo-me para realizar a tarefa bissemanal. Levanto da cama e acendo a luz. Sim! Como pude me esquecer?! É a minha vez de ir ao supermercado! Esqueça a cama, o cobertor e o Wi-Fi. Que se fodam minhas ideias de religião, o boteco online e os afazeres do escritório! Acima de tudo, que se foda a distância! É hora de tomar um banho, colocar minha melhor roupa e vestir a máscara mais confortável para gozar da liberdade de caminhar até a esquina carregado de sacolas ecológicas! Já posso até sentir minhas mãos guiando um carrinho enferrujado e barulhento pelos corredores de laticínios! O ar puro do oceano vindo da seção de peixes! A emoção de cruzar com outras pessoas mascaradas numa grande comunhão pandêmica! A misteriosa distância de um metro e meio na fila do caixa! A sensação de proteção ao chegar em casa e lavar cada batata! Sim, era isso que faltava em minha vida. Animado, inicio uma lista mental de tudo que precisamos. Arroz, feijão, ovos, álcool em gel…
Eu prefiro fazê-lo.
Sanchez é natural de São Paulo/SP e tem 30 anos de idade. É formado em Letras pela Universidade de São Paulo e Mestre em Literatura Inglesa pela mesma instituição. Atualmente trabalha como revisor e tradutor em uma editora de livros didáticos.