o ofício da fome, de Alexandre Arbex

A amizade, por vezes, impõe-nos estranhas obrigações. Não me julgo, falando honestamente, à altura da tarefa que me coube desempenhar em memória de meu velho camarada Florentim Avesso, cujas partes finais enterrei na tarde de ontem após tantos meses de dolorosas experimentações. Creio, porém, que, se me negasse a satisfazer seu último pedido, a deslealdade dessa recusa evasiva anularia de uma vez todos os méritos da verdadeira devoção com que acompanhei as etapas finais de sua longa penitência. Informo de antemão que jamais reivindiquei qualquer compensação em troca da assistência assídua que dediquei às suas crescentes necessidades, e que tampouco pretendo servir-me deste relato para granjear em meu favor a atenção pública, se é que minhas palavras sairão à luz um dia.

Seria, sem dúvida, desejável e correto introduzir este depoimento com uma síntese cronológica dos fatos que precederam à radical resolução de meu amigo, mas Florentim nunca me confidenciou os motivos que o haviam determinado a se submeter voluntariamente a tão severas provações, e eu, a despeito de ter a princípio tentado desesperadamente demovê-lo de seu propósito, confesso que logo desisti de esperar qualquer esclarecimento ou, ao menos, qualquer justificativa, ainda que insensata ou absurda, que me permitisse situar seus atos no campo do martírio ou do delírio. Estou certo, ou folgaria muito de estar, de que meu amigo, ao me encarregar da missão de empreender narrativa de sua morte, tampouco tinha intenção de figurar nela como um herói incompreendido, capaz de inspirar nos corações ingênuos o anseio de repetir seu trágico exemplo. Por essa razão, serei prudente ao especular sobre os sentimentos que pareceram perturbá-lo, sobretudo nas suas últimas incisões, quando, ainda relutante, ele concedeu uma trégua à dor e aceitou morfina. Para ser fiel à promessa que lhe fiz e imprimir a este memorial o caráter desapaixonado que certamente agradaria a Florentim, guardarei silêncio sobre meus próprios juízos morais diante dos fatos que me disponho a descrever, e somente farei algum acréscimo de opinião ou hipótese quando for conveniente evitar que o leitor crie, a respeito de meu amigo, uma imagem imerecidamente atroz.

Florentim procurou-me no consultório quando já havia perdido o pé direito, dois dedos da mão esquerda e o saco escrotal. Chegou só, arrimado a uma bengala de alumínio, sem marcar hora, e se valeu de sua deplorável condição física e de nossa velha camaradagem dos tempos colegiais para ser recebido imediatamente. De início, não me contou como tais acidentes se sucederam, e me deixou atribuí-los, com essa deliberada omissão, aos efeitos de um inexistente diabetes. Apenas algum tempo depois, eu atinaria que aquela visita tinha o duplo propósito de despertar meu interesse pelo seu caso e sondar minha discrição; de fato, se me fosse dado saber tudo de repente, uma repugnância invencível pela sua figura teria interditado definitivamente o diálogo entre nós. Ajudei-o a se despir, apalpei um pouco constrangido o ponto de sua castração e atestei afinal que, a despeito das estranhas cicatrizes de suas mutilações, Florentim gozava de uma saúde perfeita. Ele sorriu sem satisfação e se limitou a responder que aquela boa notícia o autorizava a dar seguimento aos seus projetos. Convidou-me a ir vê-lo em seu apartamento no fim de semana, a pretexto de compensar com um almoço a generosidade daquela consulta intempestiva e gratuita, e eu, supondo que suas evidentes dificuldades de locomoção deviam privá-lo de companhia, acabei por aceitar a proposta, embora não houvesse entre nós intimidade suficiente para justificar uma visita tão pessoal.

Ao cumprimentá-lo na chegada à sua casa, notei a falta do terceiro dedo na sua mão esquerda. Eu teria facilmente associado essa inesperada lacuna a uma traição da memória se não tivesse percebido que a lesão sobre o talo do metacarpo ainda parecia fresca, quase suculenta. Florentim, apoiando-se nos móveis, indicou-me, com um aceno, um sofá de palhinha, submerso numa nuvem de almofadas brancas, e se atirou à poltrona de couro sintético, carcomido nas costuras, a mesma onde o vi morrer dois dias atrás. Não emiti de princípio nenhum comentário sobre sua ferida recente e, evitando olhá-la, tentava concentrar minha atenção noutros objetos da sala, um vaso de cristal jateado na mesa de centro, um estojo de baralho, um porta-retratos vazio. Monossilábico e vigilante, o anfitrião mal e mal respondia às frases com que eu me empenhava em prolongar as aflitivas cordialidades iniciais, e parecia apenas cronometrar em segredo por quanto tempo eu seguiria adiando a pergunta tão nitidamente estampada no espanto da minha fisionomia. Esse jogo depressa desgastou minha paciência: desabotoando o paletó, já à espera de uma longa conversa, e assumindo um tom franco, quase hostil, perguntei-lhe, então, meu caro, o que aconteceu com o dedo? Ele suspirou, aliviado de poder afinal dizer as palavras que pareciam tolhê-lo dentro de si desde minha entrada, e, como uma criança que sabe ter ido longe demais mas se julga já suficientemente punida pelo próprio erro, respondeu, sorrindo, eu comi.

Não consegui almoçar, mas aceitei o chá sem a sobremesa, esforçando-me por dominar aos poucos as ânsias que me subiam por dentro com uma efervescência amarga. Depois de uma hora, de pé ante a entrada da varanda contígua à sala de visitas, pus-me a escutar as confissões que Florentim, de volta à poltrona, lentamente desfiava às minhas costas. Ele contou que, certa tarde, deitado na cama, com a cabeça ligeiramente suspensa e apoiada contra um travesseiro, começou, por uma distração inquieta, a balançar os pés. Ficara assim a admirá-los, como se a sincronia desse movimento fosse uma manifestação espontânea deles, uma exibição graciosa de um par de dançarinos siameses. A longa e passiva contemplação o fez aos poucos cair num estado de torpor próximo ao da hipnose. Seus pés pareceram-lhe tão suaves e sinuosos em sua forma, tão crescidos em sua massa, que ele os apeteceu. De súbito, então, lançou-se num salto sobre eles com uma irresistível voracidade. Calhou pela sorte que pegasse primeiro o direito. Comprimiu as mandíbulas com tanta força que, ao soltá-lo, sentiu que lhe sobrara dentro da boca uma tira de carne. O pedaço soube-lhe a algo como uma capa de gordura fria e insossa que ele teria certamente cuspido se, em seguida, inesperadamente, não lhe subisse aos poucos ao palato um deleite insólito, que se intensificava, preenchendo seu paladar, à medida que a polpa dura do pé se dissolvia na saliva. Quando a engoliu, afinal, uma sensação de saciedade assolou tão violentamente seus sentidos que ele quase desfaleceu: deu-se conta, então, de que não poderia mais viver sem atingir outra vez a delícia extrema daquela deglutição cujo prazer estava além dos limites do sofrimento físico e da náusea.

Terminou de comer o pé em uma semana, disse-me, com uma entonação exultante, e eu compreendi que ele descortinara com esse triunfo um horizonte de ainda mais espetaculares realizações. Naquela ocasião, não tive espírito para inquiri-lo acerca das presumíveis dificuldades de execução desse ato, mas Florentim explicou-me depois que havia recorrido aos mais lacerantes meios contra a resistência dos ossos, fracionando-os em partes pequenas como comprimidos para engoli-los com conhaque. Uma noite, ao assistir a um desses programas de curiosidades científicas, estrelados por jovens de colete, gravata borboleta e gel capilar, ele descobrira um método módico para amolecer ossos de galinha: vinagre quente. Encheu quase até a borda uma panela com o líquido, ferveu-o um pouco para acelerar a fermentação, despejou o conteúdo num largo recipiente de louça e, tão logo a temperatura lhe pareceu suportável, imergiu nele o pé um tanto destroçado, com as falanges e metatarsos já aparentes. Reaquecendo a intervalos o conteúdo, submeteu-se a esse experimento por um prazo maior que o aplicado aos galináceos, certo de que os ossos humanos, mais grossos, não se quebrariam com igual facilidade. Perguntei-lhe, tornando a encará-lo pela primeira vez desde o início de sua narração, se a reação química havia sido eficaz. Em parte, ele respondeu, precisei complementar o efeito com o auxílio da força, e, calculando que meus ossos estavam já tão esfarelados que poderia martelá-los quase insensivelmente, acabei por desmaiar de dor após uma sequência de golpes. Recostado à porta da cozinha, servindo-se também de uma xícara de chá, Florentim disse-me que esses procedimentos não lhe eram mais tão penosos e que, aliás, já os tinha incorporado ao seu ritual. Tão logo, porém, disse esta última palavra, apressou-se a esclarecer que suas práticas não tinham qualquer inspiração mística ou religiosa, e que, se algum ritual havia nelas, era somente o da refeição. O gosto dos tecidos moles encavados nas reentrâncias ósseas o havia extasiado e, desde então, ele se habituara a deixar as feridas à vista, sem curativos, para aguçar o apetite. Mas aquelas primeiras e excruciantes tentativas de comer o pé quase o tinham feito duvidar se aguentaria levar adiante o que tinha iniciado. Dias depois, no banho, teve vontade de comer o saco escrotal: disse-me, com um riso envergonhado, que se sentara no piso do box, esticando as pernas contra o blindex e dobrando o abdômen, para pôr ao alcance dos dentes aquelas partes, até que uma fisgada muscular o fez desistir do ato e o obrigou a usar as mãos para trazê-las à boca. Aos repuxões, aos rasgos, aos arrancos, esgarçou as pregas até abrir pequenas fendas — precisei fazer muita força, disse, muita força mesmo — e, em seguida, estendendo as mãos para apanhar, numa gaveta sob a pia, o alicate de unha, retalhou os pedaços pendentes, e os comeu, como já havia comido os testículos, cuja consistência descreveu como semelhante à de um caroço de sebo. Indaguei-lhe como ele pudera resistir àquele suplício absurdo, e Florentim, fechando os olhos com o regozijo da lembrança, respondeu, o sabor é indescritível.

A amputação desastrosa, contou-me ele, pusera-o a perder muito sangue e o submetera a um repouso demorado. Àquela altura, apenas a muito custo eu conseguia dominar a ojeriza e a indignação que o relato de Florentim me causava, e creio que, ao perguntar-lhe sobre as consequências daquela hemorragia, deixei que essas emoções imprimissem à minha voz um tom colérico, que o assustou. Falando mais baixo e devagar, como se por um momento tomasse consciência dos seus abomináveis feitos, Florentim respondeu que havia ele próprio providenciado a sutura do corte com materiais esterilizados, mandados vir da farmácia, mas que, na noite do incidente, arrepios o percorreram por dentro como aranhas geladas subindo sob a pele, e ele teve muito medo de morrer. Estava claro, disse, que não poderia prosseguir assim, sem método, tão desassistidamente, se desejava ir além. Ao ouvi-lo anunciar assim seu propósito, compreendi de chofre o motivo da minha presença em sua casa, e me dei conta de que seu discurso, tão meticuloso e ponderado, soava não como o desabafo cruel de um homem doente, mas como o discreto preâmbulo de um convite. Não o autorizei a formulá-lo: pus-me à distância, como se quisesse repelir as palavras que se seguiriam, e, primeiro com sobriedade e depois com aspereza, procurei persuadi-lo de todas as formas a não se entregar àquele brutal e desumano programa. Disse-lhe que, cedo ou tarde, as sequelas o obrigariam a recolher-se a um hospital, onde, preso a uma cama e reduzido à mais infame invalidez, ele certamente se arrependeria de se ter sujeitado àquele castigo selvagem. Cabisbaixo, meu pobre amigo esperou que eu me calasse para afinal responder, com uma voz resoluta e serena, que iria o mais longe que pudesse.

Pouco a pouco, porém, observando o quanto Florentim parecia insensível às próprias dores, eu deixaria de nutrir qualquer compaixão por ele, e logo as minhas preocupações passariam a concentrar-se menos em sua pessoa que em sua arte. Soube depois que, desde o desastroso episódio no banho, Florentim se dedicara a estudar técnicas finas de corte e excisão, mapeando, com polígonos pontilhados de caneta preta, as partes mais vascularizadas de seu corpo, a fim de controlar os sangramentos. Como o cheiro das pomadas anestesiantes na pele lhe tirava completamente o apetite, ele adotara, em seus começos, o hábito de tomar três pílulas de analgésico com chá de camomila misturado a uma bebida alcoólica para evitar que a dor em excesso, perturbando-o na operação, o fizesse errar as mordidas. Aprendera, enfim, com a experiência: notando, por exemplo, que a ingestão de pelos lhe dava azia, depilou de vez todos os seus membros. Quando começara a comer os dedos da mão, Florentim observava já um escrupuloso conjunto de práticas seguras que a pesquisa e a autoanálise o haviam induzido a estabelecer e para cujo aprimoramento eu viria contribuir modestamente. O que lhe faltara, no seu impetuoso início, era certo senso estratégico, conforme ele próprio admitiu: por equívoco não previra, por exemplo, o quanto a falta dos dedos dificultaria a abertura dos frascos, a administração correta dos socorros necessários, o manejo da lâmina e outros instrumentos que o auxiliavam a cindir e lancetar as fibras e os tendões mais duros.

Naquela primeira tarde, entretanto, despedi-me horrorizado de Florentim. Com uma recusa ríspida, deixei claro que não tomaria parte em seu projeto e lhe sugeri que, em vez de médicos, ele recrutasse sádicos. Em casa, preparei uma sopa para quebrar a onda de enjoo que me revolvia o estômago e liguei a televisão para apagar da cabeça as imagens que me haviam ficado daquela visita. Lembro-me de esperar o início de uma partida de futebol quando entrou no ar a propaganda de um dentifrício, com cenas de esportes aquáticos sob uma fosforescência azulada, ao som da voz de um locutor que exclamava repetidamente que a maior concentração de flúor da nova fórmula garantia um sorriso ainda mais branco e limpo, a maior concentração de flúor da nova fórmula garantia um sorriso ainda mais branco e limpo, a maior concentração de flúor, flúor, flúor, sim, era isso, levantei-me às pressas, destaquei uma folha do bloco de prontuários médicos e escrevi essas duas palavras, ácido fluorídrico. A intuição confirmar-se-ia em seguida: consultando um compêndio de química, verifiquei que o ácido fluorídrico, diluído, era capaz de penetrar a pele e dissolver por dentro os ossos. Calculei que, combinada com o vinagre em certa quantidade — cuja dosagem não revelo aqui porque pretendo aperfeiçoar a composição e patenteá-la —, essa substância precipitaria os efeitos corrosivos que Florentim desejava aplicar às frações comestíveis de seu esqueleto. O estranho entusiasmo que se apoderou de mim com a descoberta me obrigou a admitir que a proposta de meu amigo definitivamente me interessava.

Após alguns exames que supervisionei pessoalmente, estabeleci um cronograma para as atividades alimentares de Florentim, propondo intervalos regulares entre as porções e prescrevendo uma quantidade padrão para estas, além de acrescentar novos expedientes de atenuação da dor. Passei a visitá-lo todos os dias, às vezes pela manhã e à noite: auscultava-o, media sua temperatura e pressão e, tanto quanto possível, punha ordem nas coisas da casa, efetuando as adaptações necessárias ao seu estado e assumindo alguns cuidados com seu asseio. Não demorei a conseguir assistir às suas refeições com uma atenção tranquila, sem engulhos, e a minha simples companhia nessas ocasiões lhe transmitia, como ele próprio me revelou, uma confiança estimulante. Jamais deixou de me admirar o apetite com que Florentim comia: uma cintilação de prazer parecia preencher seus olhos amarelados enquanto ele mascava longa e lentamente, como um chiclete massudo que crescesse na boca, um pedaço seu. Ao princípio, ele rejeitava qualquer outra comida, alegando que nada lhe sabia melhor ao paladar que sua própria carne, mas o forcei a alternar essa preferência com a ingestão de alimentos convencionais, visto que as pausas entre as perdas de suas partes, previstas no nosso planejamento, acarretar-lhe-iam jejuns relativamente demorados.

No espaço de poucas semanas, Florentim comeu os dois últimos dedos da mão esquerda, a mão esquerda, a superfície do seu antebraço e as peles flácidas que revestiam aquela camada em geral mais gorda e macia — que ele também comeu — junto ao cotovelo. Não sei se me surpreendia mais a estabilidade de seus sinais clínicos ou a lucidez imperturbável com que ele conversava sobre os pequenos fatos do cotidiano, o clima, o noticiário, o vinho. Às vezes, quando eu emendava duas, três noites em sua casa, a excepcionalidade da situação de Florentim parecia suavizar-se, e uma sensação de paz doméstica harmonizava com tal placidez nosso convívio que eu, obrigado a comparecer toda manhã ao consultório, comecei a considerar o trabalho externo uma ocupação secundária e enfadonha, um tributo que pagava ao tempo em troca de mais uma tarde aprazível em companhia de meu amigo.

Essa calmaria, conjugada com o perfeito cumprimento de nosso programa e a correta prevenção de todas as eventualidades — febres, vomições, desarranjos —, iludira-me por bom tempo acerca da conduta de Florentim, mas as dissimulações que ele empregava para comer às escondidas acabaram por ter um grave desfecho de cuja responsabilidade não posso isentar-me inteiramente. A verdade é que, por mais que uma intimidade saudável se tivesse já estabelecido entre nós, nunca me senti à vontade com a tarefa, cada vez mais difícil e necessária, de auxiliá-lo no banho. Não me incomodava, de nenhum modo, a obrigação médica de fazer a assepsia de seus ferimentos recentes, ainda que tivesse preferido delegar o serviço a um enfermeiro. Contudo, lavar e ensaboar seu corpo de homem, nu e meio amorfo, sob o chuveiro, dava-me a sensação desagradável de ter à mercê de minha força um animal pesado e inútil, cuja pele ainda se crispava ao tato da água fria e cujos músculos ainda se retesavam ao contato de minhas mãos, e ao qual eu devotava todavia um incompreensível desvelo. Meus escrúpulos de decência, a pretexto de proteger sua privacidade, me faziam sair do banheiro tão logo o via bem instalado no box, com o corpo recostado e seguro. Punha-me, então, porta fora, à espera do chamado para dobrar a maçaneta e recebê-lo com a toalha seca. Uma noite, porém, quando Florentim tardava mais que o habitual e sua voz parecia extinguir-se num longo sussurro ao responder a meus apelos, precisei entrar. Surpreendi-o, sentado, exangue e sonolento, no meio de uma poça de sangue, com o pé esquerdo estraçalhado. Puxei-o às pressas para fora, estanquei a hemorragia com sua própria roupa umedecida pelo vapor quente do chuveiro e providenciei um curativo precário, que completaria após reanimá-lo. Considerei por um instante recorrer à injeção de adrenalina que guardara no armário da cozinha e tentar o procedimento de ressuscitação com uma aplicação intracardíaca de emergência, mas, de súbito, num estremecimento, Florentim golfou um pedaço duro e vermelho de carne, lustroso como um rubi, e, puxando-me pela gola da camisa com os dedos encavalados, pediu água. Abracei-o, ainda muito abalado, acolhendo no calor da minha mão sua testa fria, e senti, então, que o perdoava por aquela desobediência, que o perdoava por qualquer coisa, porque o amava como a um filho que eu tivesse tirado do fundo da morte.

Passamos a madrugada no banheiro: quando Florentim acordou, ainda no meu colo, as primeiras luzes da manhã já penetravam o vidro frisado dos basculantes. Seus olhos, fixando-se na parede branca, pareciam recobrar aos poucos as circunstâncias anteriores a seu desfalecimento. Ele me fitou com o rosto manchado pela vergonha de sua degradação, e baixou depressa a vista. Levantei-me, comovido, ergui-o ainda mais alto nos braços, esplêndido como um animal sagrado sobrevivente ao seu próprio sacrifício, e o fiz mirar-se demoradamente no espelho. Quando ele, afinal mais calmo, restituído em sua dignidade, parecia já distinguir no reflexo o que lhe faltava e o que lhe sobrava, eu lhe disse, vai ficar tudo bem, seu corpo está assimilando melhor a dieta, aliás, se não fosse a perda de tantas partes, talvez você tivesse até ganhado peso. Sorri, Florentim sorriu, gargalhamos até.

Desde então, passei a vigiar Florentim diuturnamente, já não com o intuito de constrangê-lo a observar o calendário que lhe receitara e do qual acabei por abrir mão, mas com a preocupação de prover condições tão seguras quanto possível para que ele seguisse doravante apenas a lei da sua própria fome. A crescente dependência de meu amigo, além dos cuidados médicos de rotina, determinou-me a tirar férias do consultório e a me alojar, de fato, no seu apartamento. Somente pude vencer sua obstinada e entretanto justificável recusa a contratar auxiliares para os serviços mais pesados quando o ambiente se tornou a tal ponto caótico que era quase impossível encontrar um espaço livre e limpo na casa onde ele pudesse descansar. Em dias de faxina, mantinha-o sempre trancado no quarto, a salvo do espanto dos empregados, cuja curiosidade era felizmente menor que o alívio de ter um cômodo a menos para varrer. Às noites, acomodava-o na poltrona da sala, examinava por alto as feridas frescas e perguntava o que ele comeria no dia seguinte. Florentim brandia os talos roliços dos braços mutilados enquanto falava, e eu, exausto, pestanejando, sucumbia pouco a pouco e antes dele ao sono. A certa altura, começaram a sobrevir algumas dificuldades imprevistas. Florentim já tinha comido todas as partes do corpo que conseguia levar à boca, ainda que essas manobras lhe exigissem flexões abdominais cada vez mais penosas e rendessem rações cada vez mais parcas. Conforme escasseava a carnação mole dos membros mais acessíveis, ele tentava, com espetaculares contorções que arqueavam sua coluna até o estalo, alcançar os pedaços mais fibrosos e rijos das terminações do tronco, e eu, cingindo-o com os braços, precisava empregar toda minha energia para mantê-lo nessa posição pelo tempo necessário às suas mastigações. Numa etapa seguinte, após ouvi-lo às lágrimas apelar por uma solução, consenti em realizar uma temerária intervenção: removi duas de suas costelas a fim de reduzir a angulação entre o tórax e os destroços restantes dos membros abaixo da cintura. Confesso que, ao concordar em submeter um paciente no estado de Florentim a essa cirurgia, transgredi conscientemente o código de ética de minha profissão, e não hesito em antecipar que muitos leitores acusar-me-ão mesmo de ter cometido uma desumanidade; contudo, dói-me admiti-lo, Florentim já estava reduzido então a uma forma apenas vagamente humana ou, se me é permitido usar de sinceridade sem parecer cruel, à forma de um feto inacabado e descomunal. Apesar disso, faço registro de que a operação domiciliar transcorreu segundo o mais rigoroso protocolo médico: não poupei despesas para cercar o paciente de todos os aparatos e precauções que tal procedimento reclamaria em um ambiente hospitalar adequado, e rogo aos colegas de ofício a cujo conhecimento estas notas tenham acaso chegado que, antes de me denunciarem à corporação, deem-se por favor o trabalho de consultar as seções finais do longo prontuário que mantive, dia após dia, no decurso desse tratamento e em cuja redação creio ter empregado a mais minuciosa e elucidativa tecnicalidade.

Aludi, mais acima, de maneira sucinta e discreta, ao choro de Florentim, e na verdade não pretendia sequer mencionar esse acontecimento, sob pena de fazê-lo parecer um homem frágil e emotivo, quando a nota dominante de seu comportamento, ao longo de todo o tempo em que o acompanhei, foi uma inquebrantável resistência à dor. Essa reação, no entanto, abalou-me fortemente: era o sinal de que meu infeliz amigo já não raciocinava com clareza e que eu deveria preparar-me para o pior. Nas semanas finais, assolado de espasmos lancinantes, ele já não conseguia manter a coluna ereta, e entretanto persistia em sua fome. Ainda o ajudei a ganhar mais alguma envergadura, desatando, a frio, com um instrumento de incisão, as ligas dos músculos, os nós das nervuras e cartilagens que estorvavam seu movimento e o impediam de comer. Seu pequeno corpo torcia-se, dobrava-se sobre si mesmo, versátil como um invertebrado, enquanto ele remordia as coxas lisas, os nacos das nádegas, os flancos. Uma tarde, num momento de descontração, cobrindo de ataduras embebidas em água morna sua barriga inchada e luzidia, perguntei-lhe, ao acaso, de que parte havia gostado mais. Das panturrilhas, disse Florentim, usando de um tom professoral, como se a resposta fosse óbvia. O silêncio risonho que se seguiu pareceu recriar por um instante entre nós uma cumplicidade que se havia naturalmente deteriorado com a progressiva dependência que o unia a mim, e então tornou a me ocorrer, após muito tempo, a ideia de questioná-lo outra vez sobre o sentido de tudo aquilo. Encarei-o a sério, exalei um sopro longo e relaxado, e carreguei dentro da boca a primeira palavra. Florentim, rolando numa languidez pastosa sobre a poltrona, fitou-me de volta com uma inesperada altivez que imediatamente repôs em seus lugares as coisas entre nós e, antes que eu pudesse articular qualquer som, disse-me, não fale nada, Alexandre, por favor. Baixei os olhos tristemente, desapontado com minha própria fraqueza, e retirei-me levando as compressas para mergulhá-las novamente na água aquecida. Já na cozinha, ouvi Florentim dizer com emoção, é muito gostoso, eu como porque é muito gostoso.

Quando sua miséria física atingiu o sofrimento extremo e somente podia ser atenuada com hiperdoses de narcóticos e analgésicos ministradas em intervalos curtos, Florentim chamou-me para junto de si e me fez saber que morreria depressa. Adverti-o de que, como médico, me recusava a acelerar esse desfecho, mas ele, repudiando a insinuação, respondeu-me que precisava apenas transmitir-me certas instruções na forma de um pedido. Disse-me, então, que não pudera deixar de reparar que eu fazia anotações regulares dos fatos que passara ao seu lado e que, tendo certeza de que elas ofereciam um registro sóbrio e fiel de suas experiências, me autorizava a publicá-las. Aliás, completou, é meu desejo. Assenti com a cabeça e pousei a mão em seu peito nu, como se jurasse sobre seu corpo. Tive a impressão de vê-lo chorar outra vez, embora fosse impossível então distinguir entre os efeitos colaterais da medicação e as manifestações genuínas de sua sentimentalidade. Perguntei-lhe, com os eufemismos de praxe que a proximidade da morte recomenda, quais eram suas disposições com respeito ao funeral, se ele não preferiria, por exemplo, uma cerimônia adequada e a discrição de um caixão, uma vez que a cremação o exporia em sua forma terminal. Florentim arregalou de repente os olhos numa expressão de revolta, e, como se reagisse a um insulto, disse-me, você sabe exatamente como eu gostaria de acabar. Nada respondi: era um desejo que eu não me sentia capaz de satisfazer, e creio que este limite estava já implícito em nossas relações desde o momento em que se tornara patente que eu o seguiria até o fim. Creio que foi a última frase sensata que o ouvi dizer: depois de um dia de febres ferozes e balbuciações desatinadas, Florentim morreu. Enterrei seus restos no jardim ao fundo do pequeno prédio onde está meu consultório, ontem à tarde, na solitária deserção de um domingo. Ainda me recrimino intimamente por não ter ao menos tentado, sobrava muito pouco dele, afinal. Sua fome poderia ser também a minha, não sei, dói escrever, dói muito, mas menos do que eu pensava, talvez seja o sal do suor, talvez seja a luz quente do abajur, dourando a carne tenra da palma da minha mão, que me faça querer outra mordida.

Alexandre Arbex nasceu em 1980 em Resende-RJ, mas cresceu no Rio de Janeiro. Trabalhou como revisor e preparador de originais no mercado editorial por quase dez anos. Publicou o livro infantil O livro (Casa da Palavra, 2001) e o livro de contos Da utilidade das coisas (Editora 7Letras, 2017), finalista do Prêmio Jabuti 2018. “O ofício da fome” faz parte deste livro. Mora em Brasília desde 2009.