tantos mortos
Como moscas no inseticida
debatendo-se
em vão
eles tentam respirar.
Pulmões apodrecidos
corações em fiapos
febre, febre e febre
sinfonia de tosse interminável
lembram moscas no inseticida
debatendo-se
o ar negando-se
a vida lhes fugindo.
A santa paz dos inocentes
repousando sobre a cama limpa
e quase casta, quase virgem, quase nada
das consciências sujas
nos diz que
são apenas cem mil.
Os dias seguem
penetrando as ventas
das bestas das manhãs
que vêm arfando,
ciscando
com seus cascos fendidos
o capim contaminado desse pasto
imunes às peçonhas dos insetos
que estertoram
perninhas para cima
num terrível esforço
e a vida se indo num golpe
numa última golfada de ar.
ogiva
Para Alberto Bresciani
Armar um poema requer lógica.
Uma lógica secreta,
de seita, confraria,
e que apenas os poetas,
iniciados nas artes dessa alquimia,
conhecem e arriscam articular.
Armar um poema é sempre forma
de amar o poema
que o leitor, ao final,
amando-o também,
tentará eternamente,
e sem sucesso,
desarmar.
um pássaro e uma mulher
aos poetas sem leitores
Um pássaro sangra na janela deste quarto
andar.
Gotas rubras de
asas
feridas
no parapeito de mármore branco
Ela se despe,
a pele branca,
e se pinta ao toucador. A noite
é fria como
a língua de um defunto
Quem poderia, eu lhe pergunto,
sob a chuva
que a tudo encharca,
vê-lo claudicar, como eu o vejo?
Vê-la a chorar, como eu a vejo?
e dessa visão extrair a
poesia?
Grandes engrenagens movem as nuvens
cinzas,
em silêncio que apavora
e esse pássaro se alimenta
de sonhos como os dela
Observo e lamento
que a máquina do céu movimente
as nuvens e as águas e o pássaro
e que vida siga
borrada
exatamente como os olhos
da mulher que chora
sob a noite fria
Há poesia no claudicar e nas lágrimas?
Há poesia no sangue que mancha
o mármore,
no frio dessa noite,
na língua de um defunto?
Há poesia no pássaro e na mulher
destes versos?
Oh, aflição tremenda
a busca da poesia
quando o que eu mais queria
era que o pássaro se fosse num voo
e que ela dormisse em mansidão
e que eu pudesse esfregar esses versos
ruins em suas fuças
metê-los em sua garganta
perfurar, com eles, esses seus olhos
que tudo ignoram
que nada sabem de poesia
que não querem saber de poesia.
| poemas do livro Tutano (Editora Patuá, 2020). |
Leonardo Almeida Filho (Campina Grande, 1960), professor universitário, escritor, reside em Brasília. Publicou O Livro de Loraine (contos, Imprell/PB, 1998), logomaquia (edição do autor, 2007), Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB, 2008), Catálogo de benefícios: o significado de uma homenagem (Hinterlândia, 2010), Nebulosa fauna & outras histórias perversas (contos, Editora e-galaxia, 2013), e pela Editora Patuá, o livro de poemas Babelical (2018) e o romance Nessa boca que te beija (2019).