ensaio sobre a loucura — lockdown dia 4
Dividir as sílabas dos dias.
Abolir o tempo através dos cálculos:
faturar os cigarros, caloria dos petiscos,
pássaros nas antenas.
Observar gestos frívolos:
trocar os freios da bicicleta
enquanto estamos todos, máquinas
e condutores, no recesso da normalidade.
Terraças e seus ladrilhos cor de terra,
mesas vazias, flores mortas sendo regadas.
Camaradas: onde se escondem?
Nem mesmo o pássaro azul brinca no céu.
Observo o céu de ponta cabeça:
a beleza repousa na desordem.
o fim do mundo é agora — lockdown dia 6
Não caem bombas deste céu em guerra.
Nas ruas, de mãos dadas, milicos e republicanos.
Não há tanques nas ruas, nem automóveis.
Nas ruas apenas o vírus?
As quitandas fecham cedo.
A barbearia, a tabacaria, os bares: nem abriram.
São tristes essas ruas.
Os milicos mandam os republicanos para casa.
Não agridem. Mas ternura não é ensinado nos quartéis.
Aplaudem das terraças, soltam fogos, bradamos heróis.
Não conheço heróis, somos todos malditos.
São tristes esses balcões.
Há tantos mortos, somos todos estúpidos.
Não aprendemos contabilidade.
Algum dia aprende(re)mos algo?
Abro os dicionários, encontro três substantivos:
bomba, peste, merda.
Uma rosa feia rasgava o asfalto.
Veio o milico e pisou nela.
do nono andar — lockdown dia 9
Conheço um mundo pequeno.
Esquadrinho a janela com dois palmos e meio.
Cruzo a floresta do quarto, a planície da sala,
sertões da cozinha, litoral da varanda.
O mundo é isto: três prédios em frente da janela.
Os vizinhos não sorriem qualquer sorriso.
Ouvem tangos. Aceitam o funeral e cerram cortinas.
Partilhamos o sol. Não ousam olhar meu rosto.
O verão brilha qualquer calor fugaz.
As crianças vestem pijamas, tramam brincadeiras
futuras confabulando através das varandas.
É triste este mundo pequeno.
estudo sobre janelas III — lockdown dia 23
lá embaixo no térreo
o filho deitado na esteira de sol
enquanto o pai curvado talvez
ouça-o ou veja mesmas notícias
de todos os dias a filha acaricia
o cão pelo sedoso brilhante
pigmentação preta agente do caos
corre e busca qualquer objeto
de plástico a mãe rega plantas
são quatro ou oito no quintal
na altura da minha janela
um homem de barba e cabelos
branquíssimos senta com o caderno
aberto e me observa enquanto eu
o observo e assim nos observamos
ele não acena eu não aceno
vai escrevendo no caderno com um
lápis amarelo vou escrevendo com
uma bic preta sempre canetas pretas
será que ele também tem manias
escreve apenas com lápis amarelos
sobe um andar à direita o pai trabalha
no computador que eu não vejo
mas imagino e a mãe no quintal
ou varanda não sei se o tamanho
muda o substantivo usado mas
a mãe sim a mãe pula corda novamente
pula corda sempre ou só nestes dias
de anormalidade usando exercícios
para gastar energia dela e dos filhos
para não surtar surtar surtar surtar
eu ela filhos pais o velho escritor
loucura é buscar normalidade
dentro desta anomalia que é a vida
o vírus quantos mortos o impacto
econômico-social quantos mortos
quarenta antena na antena um
pássaro canta eu tenho medo da
liberdade dos pássaros loucos
estudo sobre janelas IV — lockdown dia 26
Resistiré, para seguir viviendo
cantamos todas as noites.
No grito da criança
repousa esperança dúbia.
Amanhã, quem sobreviver, cantará
uma vez mais: resistiré.
Que não falte ar.
Alguns, já entregues ao medo do outro,
permanecem com cortinas fechadas.
Nós, que mostramos o rosto,
olhamos uns aos outros para
manter viva qualquer camaradagem.
Cada aplauso golpeia o muro
da morte e desesperança.
A casa do horror virá abaixo.
Nos abraçaremos outra vez.
nas ruas — lockdown dia 51
Redescobrimos o capim, a erva daninha, o dente-de-leão,
entrelaçados aos bancos dispostos na rua.
Calculamos a distância, o raio de proteção.
Os seios das árvores, fartos e primaveris,
deram sempre esta máscara contra o sol?
Nas sarjetas, brilhando sobre os paralelepípedos,
laranjas ou mexericas, desconhecemos esta selva,
incham, apodrecem, são atravessadas por vermes.
Veja esta rua íngreme e estreita, era o que chamávamos solidão.
Nossos olhos ardem, tanta luz, tanto mundo para nomear.
Somos crianças novamente.
Apontamos para tudo e tentamos recordar os nomes.
Chamamos a praça—praça, lago—lago, loja—loja.
Nos olhamos, há incerteza nos olhos.
Usamos as palavras corretas para começar o novo mundo?
Os miseráveis ainda são miseráveis.
Quem são estes que caminham ao nosso lado?
Compramos pão e café.
Ainda têm o mesmo nome?
É preciso fundar uma nova língua.
Rafael Mendes é tradutor e poeta. Residiu em Franco da Rocha, Dublin e atualmente mora em Barcelona. Publicou em 2018 Ensaio sobre o belos e o caos pela Editora Urutau. Tem participação nas seguintes antologias: Poetry in the Time of Coronavirus (EUA, 2020, no prelo), Parem as máquinas (Off Flip, 2020, Brasil, no prelo), Writing Home: The New Irish Poets (Dedalus Press, 2019, Irlanda), 32kg: Uma antologia Brasil-Irlanda (Urutau, Europa, 2017). Seus poemas já foram publicados nas revistas Ruído Manifesto, Gazeta da Poesia Inédita, Revista Gueto, Mallarmargens, Vício Velho, Subversa, FLARE magazine, The Irish Times, entre outras. Edita o blog de tradução Poetry Bilingue.