passos na esfera lunar, de Renata Py

Você dava um gemido fundo quando me ensinava a entender o mar. Além disso, devo acrescentar que, nessa miragem, você levava mais tempo para piscar. Foi assim que tatuei o caleidoscópio da sua retina na minha memória e ainda posso retratá-lo de forma exata. Já era hábito, chegava a passar um tempo avantajado nessa introspecção. Donana dizia que era maluquice; o tio, que era evocação dos entes idos. Pluralidade nas crendices nunca faltou na nossa família.

O fato é que eu invejava o seu descaso com o mundo, seus momentos solitários, você conseguia ir para longe dessas terras de ares salgados. Eu não, escravizado no próprio território. “Menina que vive no mundo da lua”, as tias comentavam. Falando nisso, achávamos graça das pessoas que duvidavam do homem na esfera lunar, questionamento comum por essas bandas. Saíamos imitando passos flutuantes e sem gravidade. Virou nossa zombaria preferida, onde quer que estivéssemos, mesmo em público.

Intelecto Divino, foi a expressão que você usou, quando um dia, depois de roubarmos a garrafa do tio, começamos a soltar intimidades nunca ditas e eu lhe questionei sobre suas miragens. O que me deixou ébrio não foi a cachaça, nem o seu vocábulo, mas a sua intimidade com o assunto. Mangou de mim, querendo me despistar. Eu zonzo, por ter dito algo, que naquela altura era mais íntimo meu do que seu.

Numa noite dessas, você mirou e ficou. Por instantes quase acreditei no chamado de familiares antigos, mas entendi ser mais profundo do que isso. Por mais especialista em te observar que eu fosse, esse conhecimento já necessitava uma ciência desconhecida. Fiquei na sua frente, como espectro, vidro limpo, cristal reluzente. Chamei três vezes seu nome de duas sílabas fortes, foi assim que te invadi.

Um frágil eco me guiou, claridade demais, perdi a vista naquela espécie de portal. Seu pulso marcava que eu tinha pouco tempo para desbravar o seu vazio. Eu corria, amedrontado, com receio de nunca mais querer sair de ti. Pelo amor de meu Pai, Dora, que visão apocalíptica. Como você conseguia manter um pingo de sanidade? Ao mesmo tempo, você era colorida demais, tons que jamais havia conhecido.

Vi a morte, quando o tio Agenor lhe abusava pelas saias de menina. A professora amarga do primário lhe repreendendo por seus assobios de alegria. Quis te pegar no colo, mas estava inteiramente dentro de ti, e mesmo que eu quisesse te afagar não conseguia colocar meus braços para fora.

Ainda assim, Dora Maria, encontrei alento. A voz do vô cantarolando para dormirmos. O arrepio na espinha quando você me via chegar, o sabor do mungunzá lhe fazendo festa, os seios fartos da senhora sua mãe lhe alimentando de existência, seu pequeno coração se formando até a primeira batida.

Voltei num ronco de laringe, cuspido para fora. Você sorria, Dora, caçoando. Eu correspondia aliviado. Não cometeria o erro habitual de lhe julgar. Tamanha impotência me restava, sabia que jamais conseguiria te expulsar de mim. Ainda que fosse eu quem a tivesse penetrado. Seu coração tocado e retocado numa repetição sem fim, movimento sem descanso, passou a me orientar. Para minha surpresa, nunca mais vi uma miragem sua. Como se não precisasse mais buscar explicação para nada, voltou a assobiar sem ser repreendida e seguiu com passos na esfera lunar.

Renata Py é publicitária, foi editora-chefe da PUNKnet e locutora na Antena Zero. Trabalhou com jornalismo cultural em veículos como Showlivre e Kultme. Hoje dedica-se apenas à escrita literária. Já participou de várias coletâneas. Lançou seu primeiro romance, Firmina, pela editora Laranja Original (2019).