processos, de José Ronaldo Siqueira

Olhou as feridas na perna. Mosquito? Mas aqui não tem mosquito? Eram várias. No início coçavam como o quê. E ele passava um bom tempo nessa fricção besta. Dava uma sensação de alívio rapidamente sumidia, pois, logo depois, vinha uma ardência de chamusco de solda. Em seguida, transformavam-se em umas bolinhas d’água. Coçavam o dobro. E ele, podendo ter aprendido algo quando da primeira vez, estourava a todas para que, em sequência, tornar a comichão aparecer, toda de novo. Por fim, restavam as minúsculas crateras rubras, como se Marte, infectado, expusesse suas entranhas escarlates em sarcomas pulsantes e vívidos.

“As pintinhas”, como sua filha chamou, quando nasceu o irmãozinho todo cheio de sardas. Ele moreno. A mãe também. Mas mosquito? Aqui? E coçava mais a perna. Saiu de casa. Haveria de comprar inseticida ou um daqueles aparelhinhos de se ligar na tomada. Lembrou-se dos mosquiteiros de sua época: uma longa tenta de filó que se prendia ao teto e ia até encostar no chão. Os mosquitos não passavam pelos buraquinhos do tecido. Isso em tese. Acordava sempre todo encalombado e com um ou dez intrusos dentro da suposta barreira protetora. Detestava-os. Parecia que havia sido engolido por um fantasma.

Ó, te aconselho, leve o aparelho, é bem menos tóxico que o aerossol. Ideal, ideal mesmo é mandar telar a janela. Não tinha como fazê-lo, o apartamento era alugado, seria a maior trabalheira conversar com o senhorio que já o havia deixado se instalar ali, por um preço abaixo do mercado, por ser amigo de infância de seu pai. Além do mais, não poderia arcar com despesa mais nenhuma por conta da mobília nova. Finalmente montara o quartinho dela. Percebeu que ela não queria mais dormir na mesma cama que ele, apesar de ser uma dessas king size, — Quase uma piscina esse trambolho! — e não se tocarem de jeito nenhum enquanto dormiam. Mas ele compreendeu: estava crescendo, amadurecendo, estava virando mocinha.

Ainda não sabia se era mosquito mesmo, mas para que a pobrezinha pudesse ter uma noite descente de sono, resolveu se precaver. Dormir com mosquito fungando nos ouvidos é flórida! Assinara a Netflix só para que ela pudesse fazer algo além de jogar videogame e assistir a animes no celular. Para que fizessem algo juntos. Só assistia televisão com ela. Tomara certa aversão ao aparelho, depois da mudança. A solidão ficava mais palpável quando ficávamos aprisionados do lado de cá da tela.

Na parede, um desenho. Seis, sete? Mandara emoldurá-lo de rosa e o pregara na sala (na verdade, fixara no quarto que ele fizera de escritório, com os livros e o computador, mas teve que recambiá-lo para a sala, pois o cômodo, agora, seria dela). Um sorriso, meio aparição, meio tempo perdido, borrou-lhe o rosto. Lembrou-se do dia. Sentiu a presença de um membro fantasma há muito amputado. Ardeu-lhe a memória pacífica que ficava repousando, decantada no fundo do lago das emoções escondidas. Pigarreou sem muita convicção para si mesmo.

Passou a mão pela perna. Os pequenos calombos lacrimejavam um líquido inodor e viscoso. Eram inúmeros. Mas como se nunca os vi…Será mesmo? Refez a lista do que comprara especialmente para agradá-la: milho para pipoca, sorvete de chocolate, coca-cola, cookies, doritos, sucrilhos, um pote descomunal de nutela — Esse negócio é de ouro? — e mais um monte de bobagens que adolescente adora. Retirou a pipoqueira do armário, para acelerar o processo e ficar mais tempo com ela do que na cozinha, retirou o leite e a manteiga do congelador, para que descongelassem a tempo, em se sobrando algo, retornaria com eles ao mesmo lugar, uma vez que não bebia leite nem usava manteiga, preferindo essa forma de manuseio a ter de jogar tudo fora toda vez que ela fosse embora.

Olhou para o relógio. O combinado era sexta às sete da noite ela já estar lá. Já ia sozinha até a sua casa. Treze anos. Puxa, parece que eu levava essa menina pelas mãos e que, numa virada de pescoço, já era essa moçona! Rapaz, estou velho, viu! Já está atrasada, essa menina!

A batata da perna coçava. Um calombo bem no centro do cotovelo coçava. A superfície repleta de veias do seu pé coçava. Coçou a todos os lugares que lhe clamavam por unhas e esfregões. Mas será?

Veio o assalto. O coração acelerou, a cabeça, instintivamente deu uma guinada simultaneamente ao tapa que se infligira na orelha. Sempre levava um susto quando os insetos lhe zumbiam dentro do ouvido. Desgraça! Conseguiu enxergá-lo. Correu atrás dele dando tapas, mão de encontro à mão, na tentativa de abater a aeronave inimiga. Pode me ferroar, seu… Minha filha, não! Saltou por cima da cama, saiu do quarto, no banheiro, viu quando pousou no espelho do armarinho. Como já houvera arrebentado a um desses, quando criança, tanto a surra quanto o castigo de três meses sem televisão o ensinara suficientemente a não bater com força nesse tipo de superfície. Aproximou a mão espalmada, mas o calor alertou o inseto que levantou voo e rumou para o quarto que agora era o dela. A força, a vibração e o prego mal colocado foram essenciais para o tombamento da memória: o quadro espatifara-se no chão. Não! Mirava os cacos, como se fossem lágrimas sólidas e cristalinas de sua própria carne, que se acumulavam ali, nem percebendo que o mosquito lhe escapara por entre os dedos.

Tremia, receava ter alguma relação o incidente com a sensação de estar começando a perdê-la que se lhe adentrava a alma, a memória. Receou que ela já houvesse começado esse processo de. Libertação? Seria isso, para ela, liberdade?

O celular tocou. Não sabia se o atendia ou se ia pegar a vassoura e a pá para limpar os cacos do extinto quadro da memória consumida, resolveu atender. Oi, coisinha linda do pai! Duas horas, Gigi! Duas horas de atraso, filhotinha. Hã, fala, o que foi? Ficar chateado? Não sei do que se trata, Gilbertine, amigas, é? Uma pizza no restaurante? Vir aqui semana que vem? Tá bom, bonitinha, pode ir, o pai não fica triste não, eu entendo sim.

Desligou. As vistas deram um salto livre e se esborracharam no chão. Suspirou. Uma quentura mole se apossou de seus olhos. Parecia que os cacos, agora, estavam ali. Pegou a vassoura e a pá, limpou o quarto da menina. Guardou o que sobrou do quadro. Tomara que tenha jeito de arrumar. Voltou com a pipoqueira para o armário, recolocou o leite e a manteiga no congelador.

Ele entendia. Nessa época, nessa idade, as amizades são tudo. Foi assim com ele, quando adolescente. Pobrezinha, quase não tem amigas. Deixe que ela se divirta. Aqui em casa é muito chato mesmo. Convencia-se. Como quem o tenta apenas soprando bolinhas de sabão.

Apagou as luzes do apartamento. Fizera sua higiene. A escuridão era total. Ia começar a dormir quando ouviu o zumbido. Levantou-se, pegou o aparelho que comprara mais cedo no supermercado e o pôs na tomada, deitando-se logo em seguida.

Pensou. Ergueu-se rapidamente e, o mais veloz que pode, retirou o aparelho dali, torcendo para que não houvesse tido tempo suficiente para surtir efeito. Quedou-se quieto por um tempo. Olhos arregalados, encarando o tudo em sua vida que representava aquele breu, quando, quase uma hora depois, escutou. Zzzzzzzzzzzzzzzzzz. Aquilo lhe trouxe alívio. Precisava daquela companhia naquela noite. Precisava muito, naquela noite solitária. Naquela noite solitária e longa. Soube, ali, naquele momento, que o processo já se iniciara.

José Ronaldo Siqueira é carioca, residindo atualmente em Mutum-MG. Professor secundarista de Língua Portuguesa e Literatura. Publicou os livros O prisioneiro (contos, Editora Cakibooks, 2012), Historinha é o escambau! (microcontos, Editora Celacanto, 2016) e o romance Manual não injuntivo de como criar um monstro (Editora Patuá, 2018) com o qual obteve o terceiro lugar no Concurso da Biblioteca Nacional em 2019, além de ter textos em mais de quarenta coletâneas pelo país.