ruído de ventos e tambores, de Valeska Brinkmann

1. Agora
Vamos esquecer tudo
esta noite vai ser como
uma flor seca dentro de
um livro de poesia

Desculpa não ter ido embora /obrigado por ter ficado/ acho que eu precisava fugir não sei exatamente do que, e você veio como um refúgio, por isso fiquei, mas agora tenho que ir / acho que era eu quem precisava de… espera eu tomar um banho, vou até a rua contigo e tomamos um café. / não, melhor não.
Essa noite vai ser como uma flor seca dentro de um livro de poesia.
Eu te amo só hoje e acabou.

2. Antes
Era numa festa. A mulher sabia quem era aquele cara, mas nunca tinham conversado. Agora falavam, bebiam, dançavam. Ele, de repente passa mal, rodopia e cai de costas, tem que sair, quer ir embora da festa. Sorte que mora ali perto. A mulher o acompanha, o ajuda a subir as escadas. Abre a porta com as chaves que ele acaba de lhe entregar, tirando do bolso da jaqueta. Adentra aquele apartamento bonito, onde nunca esteve (ruído de vento e tambores, como no filme Giordano Bruno, na procissão). A mulher despe o homem e o senta em sua cama. Está meio que dormente, mas obedece os movimentos que ela lhe sinaliza: tirar os sapatos, as meias, desabotoar o cinto… Então a mulher se enternece daquele homem, e resolve ficar ali mais tempo, talvez passar a noite (mais tambores, desta vez dentro da barriga dela). Senta-se ao seu lado e acaricia seu rosto, como se fizesse massagem facial, explora cada traço, o nariz, o redor dos olhos, o queixo, a barba a crescer, o maxilar (cena do filme Cidade Pássaro). O homem abre os olhos, eles se beijam. Um beijo arreganhado, um beijo se comendo, longo, demorado, acumulado. Um beijo colosso. Ela deita-se ao lado dele (cena do filme Nosso amor de ontem). E aprova o tipo de travesseiro.

3. Depois
Não se viram nunca mais depois daquele encontro.
Mas pensaram muito um no outro.
Ele sofreu um acidente e não pode mais andar. Mudou de cidade.
Mas, as coincidências da vida. Um dia teve uma passeata um carnaval um bloco de rua, e os dois se cruzaram no meio da passagem.
Ele de cabelos grisalhos na cadeira de rodas, o mesmo sorriso. Ela na companhia do filho. cabelos mais curtos, óculos, o mesmo sorriso.
Oi quanto tempo/ pois é quanto tempo…
é seu filho? é a sua cara / é… (Risos, música Sinal Fechado, Paulinho da Viola).
Fugiram rapidamente do bloco, da passeata do carnaval. O filho tinha encontrado os amigos e seguido para a outra direção. Tchau mãe/tchau.
Foram para um boteco ali perto. Passaram o tempo pondo os dias em conversa. Era de novo a festa. Tocaram as mãos um do outro sobre a mesa de lata do boteco. Olharam-se nos olhos. Tomaram só cerveja, mas muita (música de Itamar Assumpção ou um outro samba de Paulinho da Viola).
A noite já seguia longa e escura e a rua estava quase deserta quando eles deixaram o bar. Ela com um braço ao redor de seu pescoço (ruído de ventos e tambores, num volume mais baixo).
Ela não contou que sempre abria o livro naquela página onde tinha um amor-perfeito.

Valeska Brinkmann, Santos, 1972. Estudou Radio e TV na FAAP (SP). Escreve contos e poemas. Textos em sites literários como Stadtsprache Magazin, Literaturabr, Escamandro (traduções de poesia alemã) e em diversas antologias. Publicou na Alemanha em 2016 o livro infantil bilíngue Pedrina — a perua que queria ser pavão, pela editora Bübül Verlag Berlin. É integrante do coletivo GLENSE — guerrilha literária espontânea na sala de estar e trabalha na emissora de Rádio e TV pública de Berlim, onde vive há 17 anos.