Novidade inicialmente planejada para sair com exclusividade nas edições trimestrais da revista gueto, nas versões dos formatos PDF, MOBI E EPUB, esta coluna Últimas Páginas (o nome já diz, entrarão nas páginas finais da revista) trará crônicas e informações sobre literatura, arte, política e demais assuntos de interesse de seu colunista, nosso editor-chefe, o escritor Rodrigo Novaes de Almeida. Mas a quarentena fez com que mudássemos os nossos planos. Pelo menos durante o confinamento, a coluna será aqui no portal e semanal, sempre aos sábados, para não alterar a programação das publicações semanais de segunda a sexta. Hoje, publicamos a décima. Bem-vindxs!
Por Rodrigo Novaes de Almeida
CRÔNICA
O relato de um forasteiro
Rio de Janeiro, 18 de julho de 2020.
Eu vi uma águia com cabeça de leão usar suas garras para submeter caprídeos, enquanto sete vitelas se agachavam em adoração, aos olhos de Ningirsu, deus de Lagash. Eu vi um vaso feito com uma única folha de prata, e que um dia pertencerá ao sultão Abd-ul Hamid. Eu vi outro personagem que usava uma barba bem trabalhada, na qual faixas ondulantes terminavam em garbosas espirais. Um par de cornos enfeitava o seu capacete, conferindo-lhe status divino. Eu vi Bactrio vestindo-se apenas com uma tanga. Trazia ele uma grande cicatriz no rosto, que ia da testa ao queixo. A barba curta estava aparada com esmero. O corpo era coberto de escamas de cobra desenhadas. Baianas bactrianas de uma região norte afegã dançavam. No horizonte, uma montanha com picos brancos. Nela vivia um gênio alado, cuja cabeça era de ave de rapina. Em Lagash diziam que era ele quem tocava a flauta para chamar a deusa, que vinha ao seu encontro montada num dragão unicórnio. Mas a deusa-mãe neolítica com suas formas generosas seria agora passado. Marinheiros intrépidos contavam histórias sobre o seu aprisionamento nos mares exteriores. Rabo de peixe em corpo feminino. Cantos lamurientos. Promessas. Despojos de guerra. Eu vi Hamurabi usar um gorro redondo, próprio da realeza, no momento em que se ajoelhava e colocava a mão direita à frente da boca — em sinal de devoção, diante do novo deus, solar, que se fazia agora presente, sentado em um trono envolto em chamas. Eu vi duas sacerdotisas, nuas, agachadas frente a frente, cabeças raspadas, preparando-se para as oferendas do dia. Bacias com grãos e pequenos altares rodeavam-nas, e também louças em alabastro, caixas de pó de arroz, baús em faiança policromada, utensílios em cornalina, folhas de ouro e marfim; em breve, elas fariam amanhecer… Eu vi tudo isso e, como Assurbanipal em seu carro da vitória, retornei para casa. Trouxe comigo esses e muitos outros instantâneos da Humanidade. São eles, os homens, supersticiosos e vis, mas de extraordinária beleza.
CITAÇÃO
“Conta Valéry que certa vez o pintor Degas se queixou a Mallarmé de ter perdido o dia na vã tentativa de escrever um soneto. ‘No entanto’, acrescentou, ‘não são as ideias que me faltam… Tenho-as até demais.’ Ao que o mestre respondeu: ‘Mas, Degas, não é com ideias que se fazem versos: é com palavras.’ Para Mallarmé, como para todo verdadeiro poeta, a poesia se confunde com a linguagem, e, como explicou Valéry, é linguagem em estado nascente.” (Manuel Bandeira, p. 61, Seleta em prosa e verso: organização, estudos e notas de Emanuel de Moraes. 2 ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1975)
POESIA
NOVA POÉTICA
(de Manuel Bandeira, p. 96, Seleta em prosa e verso: organização, estudos e notas de Emanuel de Moraes. 2 ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1975)
Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito
_______________[bem engomada, e na primeira esquina
_______________[passa um caminhão, salpica-lhe o paletó
_______________[ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.
O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens
______________________________[cem por cento e as amadas que
______________________________[envelheceram sem maldade.
DICAS DE LEITURA
1. A aceleração da História e o vírus veloz, texto do psicanalista e ensaísta Tales Ab’Sáber, no site n-1 Edições.
Link: https://n-1edicoes.org/098
2. “Não estamos entrando em recuperação econômica e o próximo colapso financeiro está chegando”, por Grace Blakeley, na revista Jacobin.
Link: https://bit.ly/jacobin_colapso
3. Entrevista com o professor titular de literatura comparada da Uerj João Cezar de Castro Rocha sobre o bolsonarismo e guerra cultural, para a Agência Pública.
[TRECHO] “A Doutrina de Segurança Nacional de eliminação do inimigo interno está sendo levada com uma seriedade que nem a ditadura militar teve. Ou nós paramos essa sanha de destruição, ou o mesmo vai acontecer em todas as áreas. […] Nós vivemos hoje a iminência, um risco sério de um golpe autoritário, que será mais violento que a ditadura militar porque esse desejo de eliminação das instituições não fazia parte da ditadura militar. A ditadura militar queria criar instituições à sua imagem e semelhança. O bolsonarismo pretende destruir instituições.”
Link: https://bit.ly/3iYDyFf
DICA PARA ASSISTIR
Conversei sábado passado com o editor da Urutau Tiago Fabris Rendelli na live de lançamento do meu livro A clareira e a cidade (Editora Urutau, 2020). Está disponível no Youtube para quem perdeu.
Link: https://bit.ly/rna_live
Paris, la ville à remonter le temps. Documentário que mostra a cidade de Paris através do espaço e tempo em 5 mil anos de história. Com cenas de ficção, efeitos especiais, imagens inéditas possíveis graças ao trabalho de recuperação e tecnologia de realidade virtual, pesquisa documental aprofundada etc.
Link: https://vimeo.com/221856975
A coluna voltará em setembro de 2020.