toneladas na cabeça, de Alex Xavier

A queda levou três segundos e dezesseis décimos e se estendeu por três anos e cinco meses. Difícil precisar. O colapso exigiu uma nova percepção do tempo. A correria daria lugar à espera. A paciência substituiria a ansiedade. Mas, antes, foi necessário reiniciar o sistema com um suicídio nada metafórico. Então, olhei lá para baixo e pulei sem hesitar.

Nada colapsa da noite para o dia. Trata-se de um processo de deterioração tão lento que ninguém repara até as estruturas desabarem de vez. Mesmo quando uma construtora derruba um casarão e faz brotar ali um edifício como se plantasse um feijão mágico, há o abandono, a especulação do terreno, a pressão sobre moradores, as brechas no zoneamento e uma campanha para depreciar o imóvel sem desvalorizar a vizinhança.

Com um segundo, minha queda ainda parecia um voo. Eu me via com asas, confiante, inquebrável. Não era a primeira vez que me arriscava assim. Em 39 anos, escapei ileso de aventuras, acidentes, cirurgias, perdas, crises, paixões e desilusões. E cada ruptura me levava a um momento melhor. Então, por que me preocupar? No salto, estava bem confortável. Dinheiro no banco, saúde em dia, muita história para contar, um relacionamento seguro, início em um emprego estável, nenhum grande desafio à vista. Subi no parapeito daquela ponte em busca do caos.

O primeiro sinal do meu declínio foi um tropicão quase imperceptível. Raspei a ponta do pé em um calçamento liso e plano. Achei graça. Mais tarde, um amigo que caminhava ao meu lado na rua comentou que eu tinha “um passo maior do que o outro”. Ri de novo. Um dia, voltando do mercado, perdi o equilíbrio e bati a sacola com os ovos contra um muro. Coloquei na minha lista de patetadas. Errei a porta e raspei o ombro no batente. Sentei-me na cama só para calçar uma meia ou vestir as calças. Puxei a perna esquerda com a mão ao entrar em um carro. Demorou um ano e meio até aceitar que desaprendi a andar.

Mudanças não são repentinas. O Império Romano demorou, pelo menos, dois séculos para sucumbir, resistindo às invasões bárbaras, adaptando sua economia ao fim do sistema escravista e sucumbindo a disputas internas pelo poder. O colonialismo europeu, a monarquia francesa, o czarismo russo, todos os governos, ditatoriais ou democráticos, acumularam anos de declínio até sofrer revoluções ou golpes.

Na metade da queda, pairou a dúvida, o receio de não estar preparado para aquilo. Tudo que fiz foi largar o corpo lá do alto e deixar a gravidade agir. Seria melhor abrir os braços, criando resistência ao ar? Talvez melhorar o ângulo de mergulho. Mas nunca fui paraquedista ou atleta de saltos ornamentais. Gastei todas as vidas a que tinha direito contando com a sorte e não por alguma destreza pessoal. Só comecei a cuidar da saúde depois que meu pai faleceu. De quê? De tudo, segundo o médico. Tive medo de também morrer de tudo. Sou especialista em perder em meses o que economizei por anos. Vesti uma armadura antirromântica para me proteger do impacto de uma rejeição. E deixei tantos projetos pessoais pelo caminho que poderia segui-los de volta até o ventre da minha mãe.

Enquanto eu adaptava meu caminhar entre o compasso do Carlitos e a marcha do Robocop, notei que meu braço já não me pertencia. Ele tremeu quando levava o garfo à boca e eu fiz piada com testes psicotécnicos. Apresentou leves espasmos ao carregar um copinho entre a máquina de café e a mesa no escritório e eu fingi estar em uma gincana, equilibrando um ovo em uma colher. O médio e o indicador travaram na tecla Shift e eu brinquei que assim meus textos chamariam a atenção, escritos em capitulares. Abrir e fechar os dedos passou a ser um exercício de ioga. O teclado do piano perdeu o arpejo. A mão se escondeu no bolso do agasalho para não parecer de boneco de posto de gasolina. Após dois anos, eu aceitei que desaprendi a segurar objetos.

Mudanças são constantes, não têm fim. Formada há 4,6 bilhões de anos, a Terra nunca deixou de se transformar. De poeira espacial, passou a uma bola de fogo. Mais uns milênios e já era uma nuvem de gases metano e amônia, vaporizando repetidamente até resfriar sua superfície e inundar tudo. Cerca de 800 milhões de anos se passaram até o planeta se solidificar e surgirem bactérias unicelulares por aqui. Evoluções, extinções, glaciações, colisões, uma torta mil-folhas de eras geológicas até a geografia atual dos continentes. E como a crosta terrestre não para de se movimentar, em alguns milênios a configuração será outra, sem que nenhum de nós testemunhe a mudança. Só sei que, depois do meu salto, o eixo do mundo entortou e ele ficou instável e bem mais lento.

A um segundo da água, a corda elástica que segurava meus pés ainda não estava esticada. Perdi qualquer esperança de me salvar. Estava certo do fim, até o desejava. Chega logo! Mas demorou demais. Apresentei minha rendição. Larguei histórias sem fim, fotos jamais reveladas, desenhos apagados. Ao me deparar com encruzilhadas, muitas vezes optei em dar meia volta e ir para casa, não importa quão longe havia chegado. Acumulei paixões platônicas, deixei boletos vencerem, me dei alta da terapia. Restaram muitos verbos no futuro do pretérito.

Estava acostumado a ter mulheres correndo atrás de mim. Literalmente, pois tenho pernas longas e andava rápido, sem motivo algum. Em geral, minhas namoradas eram baixinhas e sofriam para me alcançar. De repente, a moça com quem eu saía comentou que meus movimentos pareciam em câmera lenta e era eu que não conseguia acompanhá-la. No trabalho, também demorava demais para digitar um texto simples. Fui dispensado. Parei de me exercitar porque precisava de muito mais tempo para completar uma série. Caminhar na rua se tornou uma prova de obstáculos, como se buracos, postes, degraus e lixos não estivessem lá antes. Em vez de matar um prato como um esfomeado, meus almoços se prolongaram, com o esforço dobrado para cortar um bife. Em três anos, nenhuma resposta dos médicos para o meu colapso. Para eles, eu não tinha nada. E esse nada me levou a não sair mais da cama.

O brasileiro Lazaro Schaller é o recordista mundial de mergulho de grandes alturas. Em agosto de 2015, ele saltou de uma plataforma a 59 metros em uma cachoeira na Suíça. Em pé, lesionando uma das pernas. Um ano e meio antes, pulei de cabeça de uma ponte de 50 metros de altura ao praticar bungee-jump no norte da Argentina. Um erro de cálculo fez com que eu me chocasse contra a água sem qualquer resistência, o impacto de uma tonelada sobre o cérebro. Saí andando de lá. As sequelas só apareceriam bem depois, nos membros do lado esquerdo. E, sete médicos mais tarde, finalmente recebi um diagnóstico: micro AVC causado por uma pancada. Levantei da cama e comprei uma bengala.

Alex Xavier é um jornalista refugiado na ficção. Autor do livro de contos O teatro da rotina (Editora Patuá, 2018), participou das coletâneas Não pretendia criar discórdia (Editora Giostri, 2017), Eros Ex Machina (Editora Alink, 2018) e Era de Aquária (Editora Oito e Meio, 2019). Membro do coletivo Discórdia, produz zines para feiras de publicação independente.