Brasil: (im)possíveis diálogos #27

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

Uma rede cor de palha

Por Christiane Angelotti

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Vitor Rocha

Um aroma inebriante de bolo recém tirado do forno tomava conta da casa. Enquanto o bolo esfriava e Dulce preparava a cobertura de brigadeiro, era imediatamente transportada para cinquenta anos atrás, em que ela, aos seis anos, se equilibrava na ponta dos pés para ver a mãe retirando a panela de brigadeiro do fogão, ansiando em ajudar a enrolá-los, embora a mãe soubesse que não era bem essa a única intenção da menina. Era uma época feliz, da qual Dulce lembrava com nostalgia e resignação. Ela acreditava que na vida todos têm sua cota de felicidade e a dela havia sido consumida em alguns períodos da infância.

Dante, seu cachorro, estava completando onze anos e, como todos os anos, Dulce preparava um bolo para comemorar. Ele era um cão vira-latas que ela adotou quando tinha aproximadamente um ano, magro, bege encardido e de olhar triste. Ele tinha uma história de maus tratos em sua antiga casa. Foi resgatado após uma denúncia e foi parar em um lar temporário, na casa de Eduarda, colega de trabalho de Dulce. Eduarda contou para ela que o cão morava em uma casa de praia e passava fome, pois só era alimentado quando seus donos iam para lá. Ficava trancado em um pequeno quintal sem cobertura. Ao relento. Tomava sol e chuva. Passava frio e calor. Não tinha interação com seres humanos e apenas quando o casal, dono da casa, chegava, mais ou menos de quinze em quinze dias para passar o final de semana ou uma temporada, ele recebia ração e água fresca que ficavam lá ao relento até que acabasse. Ninguém compreendia como ele não havia morrido ainda. Dulce, ao conhecer um cãozinho tão novo com essa história, logo se apaixonou. E se reconheceu nele. Ela também era uma sobrevivente.

Quando criança, pouco tempo depois do seu aniversário que ficaria marcado em sua memória como um momento feliz, sua mãe desapareceu misteriosamente junto com seu irmão caçula de apenas cinco meses. Ela nunca esquecera a sensação e o desespero de chegar em casa e não encontrar a mãe. O pai, que fora buscá-la na escola após o expediente de trabalho, ficou transtornado. Procurou a mulher pelo sobrado em que moravam várias vezes. Checou se o telefone estava funcionando. Ligou para os sogros, para alguns amigos e nenhuma notícia. Saiu chorando pela rua, com Dulce em seu colo. Perguntou aos vizinhos, mas ninguém tinha visto sua esposa. Ao anoitecer ligou para a polícia, que só registrou o desaparecimento no dia seguinte. Horas se passaram. Depois dias, semanas… E nenhum sinal. A investigação policial registrou a denúncia como abandono do lar, uma vez que ela havia levado malas com roupas dela e do pequeno José.

Dulce jamais superou essa ausência. Nunca deixou de sentir que foi preterida pela sua mãe, que só levara o bebê com ela. Seus avós maternos ficaram abalados e brigaram na justiça contra o seu pai para ficar com a sua guarda. Mas a briga demorou muito. Enquanto isso, a menina convivia com períodos de tranquilidade do pai e outros em que ele perdia a luta contra o alcoolismo. Como o cachorrinho Dante, Dulce conhecia muito bem o que era ficar trancada em casa sem comida por alguns dias. Sozinha e assustada. Conhecia o medo, a rejeição e até a dor de ser espancada, sem compreender o motivo. Cresceu com o pai a chamando de “karma” e “castigo”, e reforçando que “nem a sua mãe te quis”. Quando estava sóbrio ele pedia desculpas, tentava agradar, mas a ferida já estava aberta. E sangrava.

A pequena Dulce passou uma parte da infância em um lar temporário, onde ficava a maior parte do tempo sozinha, pois as crianças mais velhas a agrediam. Voltou para a casa do pai quando ele se casou e mudou de vida, mas já não era bem-vinda. Morou com os avós maternos dos quinze aos vinte anos, época feliz, mas a jovem Dulce já não se permitia sentir felicidade e se isolava.

Aos vinte e cinco anos começou a trabalhar como revisora em um jornal. Não foi ao enterro do pai. Aos trinta, quando sua avó morreu, ela não chorou. Ficaram só ela e o avô, que encontrava somente em casa à noite e não tinham assunto. Quando ele ficou muito doente, Dulce internou-o em um asilo. Não gostava de visitá-lo, o lugar tinha cheiro de urina e mofo. Três anos depois ele faleceu.

Dulce agora era sozinha no mundo.

* * *

Dante demorou para fazer amizade com Dulce. Para ela, um mês pareceu um ano. Por outro lado, em pouco tempo o pequeno cão já tinha outra aparência. Estava gordinho, seu pelo bege ficou macio e brilhante. E até o seu olhar foi enchendo-se de vida e alegria. Dulce levava Dante impreterivelmente a cada quinze dias ao pet shop. Ele era um cão de dentro de casa e precisava estar sempre muito bem cuidado. Dulce e Dante moravam em uma pequena casa de vila que ela comprou havia quinze anos.

Dulce nunca se casou e não teve filhos. Também não tinha amigos, tinha colegas, como ela gostava de reforçar para si mesma.

Antes de se aposentar almoçava com os colegas de trabalho. Sempre reservada e fechada. Muitos deles não gostavam dela, diziam que Dulce não sorria, não falava de sua vida. Só conversava de coisas pontuais de trabalho, mas por algum motivo Eduarda gostava de Dulce. Por quase doze anos se sentou ao seu lado no trabalho. Era a única pessoa que ainda insistia em arrancar opiniões da colega. Era a única também que a chamava para almoçar.

Eduarda foi também a única visita que Dulce recebera em casa. Foram duas vezes, quando ela fez uma cirurgia no dente e outra no aniversário de onze anos de Dante. Foi uma tarde agradável em que ela riu, se divertiu, ficou sabendo histórias da redação do jornal, dos poucos funcionários antigos que ainda estavam na ativa, e recebeu uma crítica educada de sua colega:

— Dulce, você é muito nova para ficar em casa trancada com um cachorro. Você não faz uma atividade física, não interage com outras pessoas, não sai, não viaja. Não é possível que seja feliz assim!

Dulce não gostou. Achou extremamente ofensivo o comentário de Eduarda. Desconversou e tratou de apressar a comemoração. Decidiu que não convidaria mais a colega para ir à sua casa. Ninguém tinha o direito de julgá-la.

A vila na qual Dulce morava tinha dez casas. Eram pequenas casas coloridas, todas de mesmo tamanho e padrão. Casas planas com dois quartos, banheiro, sala, cozinha, uma área na parte de trás e uma pequena varanda logo na entrada, onde Dulce pendurava diariamente uma rede cor de palha, mas que nunca usava. Passou a fazer parte de uma espécie de ritual pendurar a rede e no final do dia enrolá-la e guardá-la. Alguns vizinhos reparavam nisso e imaginavam que ela poderia estar sempre esperando alguém. Quando ela foi morar lá havia um jardim florido, que diariamente ela regava. Flores perfumadas, uma pequena área gramada e verde. Aos poucos, Dulce parou de cuidar do jardim, que foi ficando seco, sem vida, abandonado. E um pouco antes de Dante chegar em sua vida, ela mandou cimentar tudo e aproveitou para pintar a casa toda de branco. No meio das casinhas coloridas da vila a de Dulce destoava. Era branca, sem jardim, com a janela e porta da sala sempre fechadas, dando sinal de que estava ocupada somente pela rede cor de palha na varanda.

Os dias passavam. Dulce saía com Dante para passear e levá-lo ao petshop. Ia ao mercado, cozinhava e comia sozinha. Corria com uma vassoura na mão para espantar as crianças que tocavam a campainha e fugiam. Xingava o vizinho que insistia em estacionar o carro na sombra da árvore de sua calçada. Mandou cortar a árvore.

Certa vez, alguém garantiu ter visto Dulce e Dante deitados na rede da varanda balançando. Ouviram-se risadas e latidos.

Dante viveu até os quinze anos. Tempo bom para um cãozinho vira-lata que poderia não ter passado do seu primeiro ano de vida.

Após a última ida ao hospital veterinário Dulce nunca mais foi vista. Diziam que ela havia enlouquecido. Podia ter adotado outro cachorro, pensavam os vizinhos.

A rede cor de palha, porém, continuava estendida na varanda.

Christiane Angelotti é escritora, fonoaudióloga, especialista em Distúrbios da Comunicação / Neurorreabilitação, editora de livros de literatura, literatura infantojuvenil e educação. Desde 2002 trabalha com conteúdo para sites infantis. Tem textos publicados em livros didáticos e sites de educação. É produtora de conteúdo, pesquisadora em infância e educação, fundadora do portal Para Educar.