açougue
não
não
o que eu ensinei naquele vídeo
foi a desossar um leitão inteiro
só isso
como posso ter culpa do que
aquela molecada aprontou?
rejeito
nego
recuso
afinal
todo mundo gosta de assistir
barriga de bicho sendo aberta
ver focinho em tigela gelada
enquanto escuta problemas
debate úlceras e amarguras
não gosta?
tenho mais
de cem mil
views e só
tentei aproveitar a audiência
unir a carcaça aos despojos
entende?
quando faca afiada de lâmina fina
corta superficialmente as costelas
tiradas osso a osso a osso a osso
é como se eu pegasse as cédulas
desviadas das nossas mil estatais
e escancarasse o sistema podre
berrando
vagabundos
canalhas
o porco escavado ao vivo
com suas miudezas flácidas
a coluna vertebral já extraída
garras ósseas feito crustáceos
dedos em menstruação suína
zurro
suado
mexido
quando foi a última vez que
você saiu de casa sem medo?
hein?
quando?
faz tempo?
os bandidos balançam na
ponta de inox que decepa
cada bochecha gorducha
do bacorinho destampado
rasgando ocos e articulações
as patas serradas e estáticas
lombo dilacerado rumo ao rabo
gume abrindo vasos como livros
o ísquio preso à cartilagem tenra
torcido até que o branco do nervo
fique visível e possa ser retirado
como todos os nossos políticos
devem ser extirpados deste país
esgoelo
escumo
besunto
mas nunca nunca podia pensar
que essa molecada tão jovem
faria uma barbaridade dessas
jesus
tão meninos tão menininhos
meus sentimentos à família
lamento
mas e daí?
como eu teria evitado?
não estava lá na hora
sequer conheço essas
crianças ou a vítima
só gravo vídeos
apenas isso
e desosso
leitões
só
não tenho nada contra
mas
um corpo
olha
olha ali, pai
uma sereia
berra o menino
sunguinha vermelha
dedo apontado pro
corpo roliço e cinza
lambuzado de areia
não
isso é um golfinho
aplaude o homem
as mãos no animal
buraco de respiração
abrindo e fechando
pupilas derretidas
guarda-sóis azuis
vitrais de igreja
veja, amor
o que achamos na beirinha
anuncia o pai de férias para
a mulher que afasta curiosos
melecados por breja e sacolé
ombro a ombro gesticulando
corre, tem um golfinho aqui
é meu
nem vem
nós vimos primeiro
trovoa a voz da mãe
na amarela maresia
o celular já preparado
ei
moço
tira uma foto nossa com
essa dádiva de deus?
mas a multidão de dedos e
bundas de biquíni fio-dental
leva pra longe a pele rachada
do bicho que balanga cheio
de protetor solar e amendoim
credo, achei que fosse cobra
guincha a velha de maiô rosa
pras crianças excitadíssimas
nossa, mas ele tem dentinhos!
barbatanas de mão em mão
o bico sorridente na internet
um homem põe dois dedos
e uma lata de cerveja
no orifício respiratório do corpo
que chega ao carrinho de mate
meio troncho, quase abalofado
mas tá morto essa desgraça
chuta o vendedor de fruta
aquele peso preto
filé milanesa
prato feito
urubu
boneco
empalhado
afastado
dos parças no futevôlei
da velha bêbada no maiô
das crianças baratas tontas
do chá gelado, meu bom?
do caldinho mais barato
e daquele menino
sunguinha vermelha
que desenterra
uma concha
olha
olha, pai
uma armadura
top
polegar e
indicador
apontados
em pose
de pistola
pou
pou
pou
posso
tentar
também
papai?
pequeno
polegar e
pequeno
indicador
apontados
em pose
de pistola
pou
pou
pou
papai
papai?
papai!
| poemas do livro Férias na Disney (Editora Patuá, no prelo). |
Bruno Molinero é jornalista e autor de Alarido, livro que venceu o Prêmio Guavira de Literatura, e Férias na Disney (Editora Patuá, no prelo).