Novidade inicialmente planejada para sair com exclusividade nas edições trimestrais da revista gueto, nas versões dos formatos PDF, MOBI E EPUB, esta coluna Últimas Páginas (o nome já diz, entrarão nas páginas finais da revista) trará crônicas e informações sobre literatura, arte, política e demais assuntos de interesse de seu colunista, nosso editor-chefe, o escritor Rodrigo Novaes de Almeida. Mas a quarentena fez com que mudássemos os nossos planos. Pelo menos durante o confinamento, a coluna será aqui no portal e semanal, sempre aos sábados, para não alterar a programação das publicações semanais de segunda a sexta. Hoje, publicamos a nona. Bem-vindxs!
Por Rodrigo Novaes de Almeida
CRÔNICA
Confissões de um escritor em quarentena
Rio de Janeiro, 11 de julho de 2020.
Há alguns anos sempre me pergunto se o que estou para escrever é realmente importante, se não para os outros, ao menos para mim — principalmente para mim. Faço assim com os poemas, os contos e as crônicas, e com o romance que terminei poucas semanas atrás e está guardado esperando uma última leitura antes que eu vá procurar uma editora que o publique.
Desse modo, passei a escrever bem menos e a ler bem mais, tanto os clássicos quanto os colegas contemporâneos. Poesia, então, é bastante raro escrever, e se tivesse dado tempo para o meu poema “Tocata e fuga funestas” entrar no livro A clareira e a cidade (Editora Urutau, 2020), eu não pensaria em escrever outro livro desse gênero e estaria satisfeito com esta obra que encerra, de certa forma, toda a minha filosofia, que é também, como escreveu em outro sentido Tito Leite no seu posfácio, uma antropologia.
Já o romance é algo que não me dá prazer escrever. A necessidade — e a urgência — de escrever este, o qual dei o nome de Ensaio sobre a paisagem, tem a ver com o fato de nunca ter publicado um e de achar a experiência necessária, pelo menos antes que o romance como gênero morra definitivamente (como tudo mais, se não a nossa espécie inteira, esse mundo erigido pelo humanismo nos últimos séculos, séculos estes que assistiram à ascensão do romance). Por outro lado, é uma experiência que deve se repetir no futuro, porque outras questões se abriram e precisarei retomá-las. A urgência, todavia, teve a ver com a descoberta do câncer, e este é de modo particular um ano de urgências, por estar passando ainda por ele e por ter passado, durante o final da quimioterapia no mês passado, pelo novo coronavírus da famigerada e mortal Covid-19 (achei que os sintomas fossem da quimio, mas a médica que identificou no meu pulmão o coronavírus analisando a tomografia disse que alguns remédios do tratamento teriam atacado o coronavírus, então talvez estar fazendo quimio no momento em que peguei Covid-19 tenha sido um golpe de sorte do destino, como se costuma dizer, e salvado a minha vida). Se o ano de 2020 fosse uma pessoa, eu diria que ela está tentando me matar. Sendo assim, precavido que sou, como daqui a poucos dias passarei por uma cirurgia (por isto este balanço de minhas atividades na forma de crônica hoje), fiz questão de deixar todos os meus arquivos com originais em andamento arrumados — além do arquivo do romance, há o de crônicas e o de contos.
E sobre o arquivo de contos, o que tenho a dizer?
O conto é o gênero em que me sinto à vontade, é nele, ao escrever, que sinto também prazer, e é para ele que volto minha atenção e faço os meus estudos mais diligentes. Daí também a importância de escrever menos e refletir sempre se uma ideia vale realmente a pena ser colocada no papel (ainda uso papel e caneta [no lugar da pena supracitada, que, mesmo para mim, seria anacrônica demais] para escrever a primeira versão de um texto). Gostaria de voltar agora, nestas semanas de confinamento e de tratamento médico, ao conto (estou com alguns inéditos e acredito que, para um livro, eu esteja na metade do caminho), mas a necessidade — e não a urgência, neste caso — me colocou diante dessas crônicas que tenho escrito nos últimos dois meses, primeiro para trabalhar sobre temas mais brandos do que vinha fazendo no romance, ou que desenvolveria no conto, e depois porque percebi que seria uma forma mais direta de refletir sobre tudo o que estamos todos vivendo neste período sem ser fatalista (no conto ou no romance eu seria um deus do flagelo) e de poder conversar a respeito com os leitores quase simultaneamente.
O romance não sei quando será publicado, talvez no ano que vem ou no outro — é o segundo que escrevo —, e diferentemente do anterior, abortado e com trechos que eram já nas primeiras versões verdadeiros contos indo parar no Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie e outros contos (Editora Patuá, 2018), este novo romance está pronto. Mas por ora ficarei à disposição do recém-lançado livro de poesia, o primeiro, como eu já disse, a encerrar minha filosofia, e isto num gênero que considero difícil, ou, colocando de outro modo, num gênero feito para os raros, e que eu ouso entregar-me apenas excepcionalmente.
HOJE, LIVE DE LANÇAMENTO
O meu livro mais recente, A clareira e a cidade, já está disponível para pré-venda no site da Editora Urutau no [link]. Hoje, às 19h, participarei de uma live de lançamento no Instagram da editora. Estão todos convidados para assistir e brindar comigo. O posfácio do livro é do poeta Tito Leite, curador da revista gueto. Saiba mais [aqui].
“A verdade nunca é uma chave, mas um enigma que tem seu sustentáculo numa clareira de luzes e sombras. Nessa direção, de forma leve e meditativa, algumas questões filosóficas ganham densidade nas mãos do poeta — pois a poesia, qual a filosofia, também começa do espanto; tirando, todavia, dos estrondos de seu íntimo e das coisas todo o nó da garganta.” (Tito Leite, no posfácio)
CITAÇÃO
“Acredito, por fim, que nosso mundo se divide em dois. De um lado, há aqueles que, como eu, estão convencidos de que somos apenas passantes, que caminham sabendo que caminhar é procurar na incerteza e no desconhecido. Do outro, há os que acreditam deter as verdades sobre todos os fatos, e buscam impor essas verdades a todos, pouco importando a diversidade das experiências e das situações. O abismo entre nós não cessa de aumentar.” (Achille Mbembe em “Carta aos alemães”, Goethe-Institut)
DICAS DE LEITURA
1. Uma boa oportunidade, ensaio do filósofo Jacques Rancière, em tradução de Peter Pál Pelbart, no site n-1 Edições, sobre a pandemia e pós-confinamento.
Link: https://n-1edicoes.org/039-1
2. “Mike Davis sobre os crimes do socialismo e do capitalismo”, entrevista na revista Jacobin.
Link: https://bit.ly/jacobin_davis
3. Duas obras da coleção Pandemia Capital, da Boitempo Editorial, em e-book: A cruel pedagogia do vírus, de Boaventura de Sousa Santos, e A arte da quarentena para principiantes, de Christian Ingo Lenz Dunker, respectivamente nos links:
Link para Boaventura: https://amzn.to/31QkS4x
Link para Dunker: https://amzn.to/3dVJKu1
DICA PARA ASSISTIR
1. “História: Direto ao Assunto”. Documentários socioculturais. Data de lançamento: 22/05/2020. Sinopse: Aulas curtas de história que usam infográficos e imagens de arquivo falam sobre avanços da ciência, movimentos sociais e descobertas que mudaram o mundo. Episódios com cerca de 20 minutos. Disponível na Netflix.
POESIA
NA BAIXA ANDALUZIA
(de João Cabral de Melo Neto)
Nessa Andaluzia coisa nenhuma cessa
completamente de ser da e de terra;
e de uma terra dessa sua, de noiva,
de entreperna: terra de vale, coxa;
donde germinarem ali pelos telhados,
e verdadeiros, jardins de jaramago:
a terra das telhas, apesar de cozida,
nem cessa de parir nem a ninfomania.
De parir flores de flor, não de urtiga:
os jardins germinam sobre casas sadias,
que exibem os tais jardins suspensos
e outro interior, no pátio de dentro,
e outros sempre onde da terra incasta
dessa Andaluzia, terra sem menopausa,
que fácil deita e deixa, nunca enviúva,
e que de ser fêmea nenhum forno cura.
2
A terra das telhas, apesar de cozida,
não cessa de dar-se ao que engravida:
segue do feminino; aliás, são do gênero
as cidades ali, sem pedra nem cimento,
feitas só de tijolo de terra parideira
de que herdam tais traços de femeeza.
(Sevilha os herdou todos e ao extremo:
a menos macha, e tendo pedra e cimento.)
A próxima coluna será publicada sábado, 18 de julho de 2020.