Sou preto e sou velho. Diferente da maioria dos pretos no Brasil, sou rico. Moro num condomínio sofisticado, num bairro de brancos que acham muito esquisito a minha família preta morar ali.
Tenho setenta anos e pratico muitos esportes. Gosto especialmente de corrida.
Dia desses fui correr até a beira da praia. Na segunda quadra após o condomínio, passei em frente ao posto de gasolina. No momento em que passei, acontecia um assalto.
Dois dentes quebrados, três costelas fraturadas, as maçãs do rosto raladas, nariz sangrando, braço esquerdo luxado. Cusparadas na cara, tapas na orelha, vários socos no estômago.
Uns brutamontes me agarraram, me esfregaram no chão de asfalto e me levaram para a delegacia como suspeito.
Meu advogado-branco veio me socorrer. Sou médico, sou dono de uma clínica, tenho três especializações, dou aulas, tenho vários livros publicados, falo quatro idiomas.
Até agora ninguém me pediu desculpas. Ficam repetindo que eu sou preto, nem pareço um velho e estava correndo, como iam saber que eu não era um marginal?
| conto do livro Velhos (Editora Reformatório, 2020). |
Alê Motta nasceu em São Fidélis, interior do estado do Rio de Janeiro. É arquiteta formada pela UFRJ. Participou da antologia 14 novos autores brasileiros, organizada pela escritora Adriana Lisboa. É autora de Interrompidos (Editora Reformatório, 2017) e Velhos (Editora Reformatório, 2020).