Brasil: (im)possíveis diálogos #25

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

Resíduo

Por Ana Squilanti

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Vitor Rocha

Toca o interfone na cozinha e eu já me preparo para dizer que não pedimos comida, nem estamos esperando alguém. Seu Geraldo sonda se está tudo certo aqui. Vi vocês na câmera de segurança subindo as escadas do prédio, chinelos nos pés e moletom, os moletons surrados desbotados que usamos para ficarmos em casa. Ultimamente só ficamos em casa.

Vi pelo visor você e a Marina subindo correndo, pulando degrau e parando em frente ao 82, a Marina levando uma vassoura na mão, o morador para fora do apartamento, a outra moradora mulher mãe da criança, ela e a criança deviam estar para dentro. Elas estavam dentro? Sim, estavam bem.

Deu para ver o lábio dele sangrando também, Geraldo? Deu nada, a imagem aqui é preto e branco, de baixa qualidade, feito TV antiga em visor de pouca polegada. Ele sangrava, cortou a gengiva, sabe se lá como, escorria fino pelo canto da boca, ele só foi perceber quando indiquei. Manchou a manga da camiseta limpando.

Subimos ao ouvirmos os gritos, mais de um, em sequência espaçada. Marina dançava ao som da música enquanto cozinhava, quando um PARA foi dito e não fazia parte do texto. Depois soaram umas batidas descompassadas da bateria, percussão essa banda não usa, falei: diminui. Ela desligou a caixa e ouvimos uma porta ser esmurrada, um grito outro, VAI EMBORA. Não esperamos dizerem SOCORRO para subirmos com qualquer coisa que virasse arma. Era voz de mulher. VAI EMBORA. Mandando homem para fora. VAI EMBORA, GUILHERME.

Só que quem sangrava era o Guilherme, que eu acabara de descobrir o nome, o lábio rosado o olhar assustado, desculpa, meninas, ele pediu e abaixou a cabeça quando nos viu aparecer na esquina do hall. Foi uma briga acalorada demais, o fogo chegou em vocês lá embaixo, no… 63? Desculpa.

Deu para ouvir os gritos aqui mais embaixo também, Geraldo me conta. Alguns vizinhos ligaram na portaria saber o que acontecia. Eu me pergunto por que somente nós socorremos? Briga de marido e mulher, ele talvez respondesse. Foram seis denúncias no prédio nos últimos tempos.

Seis? Seis casos de violência doméstica. A polícia veio em dois, eu chamei em um. Em três foi verbal, nos outros foi para o físico. Vaso quebrado, garrafa jogada pela janela, um braço luxado. Os casais não têm conseguido conviver direito na quarentena, é tempo junto forçado demais.

No 15 a briga começou por louça e no 94 pela velocidade que um deles trocava de canal. O 123 está com vazamento no cano do banheiro, mas quem brigou entre si foi o 113. Está tudo bem aí, meninas, com vocês? Sim, está. Mulher com mulher não tem dessas, né? Até tem, não aqui. Eu olho de esgueio para a Marina, que divide o interfone comigo, duas orelhas para o alto-falante, os corpos perto. Ela aperta minha cintura.

Geraldo soa preocupado do outro lado, sinto ele tirando as pelinhas laterais à unha enquanto fala. Se você quiser ligar para saber como as pessoas realmente estão tem que ser em código, Geraldo, ou então a verdade se perde, mal acha caminho.

Treinamos. Desligo o interfone. Ele toca novamente.

— Alô! Aqui é da portaria.

— Oi, seu Geraldo.

— Oi! Tivemos alguns casos de violência no prédio, estou ligando para saber se você está bem. Quando eu perguntar do seu lixo domiciliar, você diz que pode continuar a descer com ele, se estiver tudo ok com a senhora, e se não estiver, me diz que prefere que busquemos no andar, aí a gente vê o que pode fazer. Você precisa que peguemos o lixo?

— Obrigada, Geraldo, eu cuido dele.

— Certo! Boa tarde.

Coloco o fone no gancho, a orelha feliz de ficar longe dali, doída do tempo pendurada, doída de tudo que ouviu. Marina tem a orelha vermelha também, tem a mão ainda na minha cintura, a mão que agora treme e desce pro punho, aperta minha palma, a ponta dos dedos. Ela estica as duas mãos para os restos de fruta na pia, passados demais para virarem suco, para a caixinha vazia de leite, e eu vou ao banheiro e trago a sacolinha de lá, pego umas garrafas e embalagens de salgadinho do pé do sofá.

Jogamos tudo no saco preto de cem litros no latão, até o imaterial que despejamos há pouco uma na outra, depois de presenciarmos a briga dois andares acima. Damos dois, três nós, bem fortes, na boca do saco, checamos se nada dali escorre, e descemos juntas com o lixo.

Ana Squilanti nasceu em Indaiatuba, interior de São Paulo, em 1989. É escritora, roteirista e farmacêutica. Seu primeiro livro Costuras para fora (Editora Nós, 2019) foi contemplado pelo Edital de Estreantes da Secretaria Municipal de Cultura de SP.