Taco de Ouro
A primeira vez que lá estive, por completo acaso, foi escapando ao temporal sob um de seus toldos marrons. Aliás, minto. Houve antes uma tentativa: certa noite quando eu e um velho amigo tentamos lá entrar: uma partidinha, para lembrar os tempos de estudante! A ele, que passava a negócios pela cidade, levei para um passeio pelo centro antigo, por suas ruas de paralelepípedo e construções históricas, outrora opulentas, hoje mais do que decadentes, embora nelas permaneça certo ar de glamour. Paramos em frente: “Taco de Ouro: o rei do bilhar”. O palacete de três andares meio barroco, cujo só o térreo estava aceso, olhando-se da rua, parecia bem animado, e prometia uma bela noite, para nós que na juventude jogávamos naquelas bodegas tristes, mas saudosas, da cidade universitária. Mas então, quando fazíamos menção de entrar, um enorme segurança de terno nos barrou: “Fechado. É festa particular”. Que seja, bebamos noutro lugar! Mas chegará a nossa vez de gozarmos o seu ouro!
Ironicamente, se lá eu voltei, não foi para jogar. Mesmo porque o jogo para mim ficou no passado e, se todo santo dia eu venho ao centro trabalhar, raras vezes passo por ele à noite e, jamais, para me divertir. Foi por completo acaso portanto, escapando ao temporal sob um de seus toldos marrons, que lá parei. E não de noite, mas de dia, no intervalo do serviço, andando à procura de não lembro o quê, é provável que um chaveiro. Começou a cair o pé d’água e, quando dei por mim, estava diante do palacete, o qual nunca mais eu vira! E à luz do dia, sem o brilho dos letreiros piscantes, se resumia a uma casinha com colunatas e pintura bege descascada. Para minha surpresa, estava aberto e, na frente, uma plaquinha: “Almoço — Buffet de comida caseira! — R$ 13,90 à vontade — R$ 31,90 KG”. A chuva não prometia dar trégua, e afinal era meu horário de almoço… Um homem trabalhador tem o direito de, uma vez na vida, almoçar como um rei!
Desde então o tal “Taco de Ouro”, onde certa noite fomos barrados à entrada, passou a ser meu habitual local de almoço, quase uma segunda casa, que sempre está aí para me acolher nos intervalos do trabalho. Nela eu me sento bem à vontade e assim à vontade eu como. Ignoro o porquê, mas a comida é surpreendentemente boa, e o preço inexplicavelmente justo. Aliás, nem justo chega a ser. Eu me sirvo à vontade da mesa de frios, com salame italiano e provolone, de saladas, com tabule e salpicão, e dos pratos quentes o que há de melhor, com bolinhos e tortilhas de toda espécie, para chegando ao caixa sentir vergonha de pagar tão pouco. Inclusive sobremesa e o café de cortesia! Um restaurante de fechada para um esquema de lavagem de dinheiro? Cheguei a suspeitar. Mas por fim concluí que o lucro do negócio é o bilhar e, o restaurante como um todo, uma cortesia só, e equacionei a casinha de colunatas e pintura bege descascada, como aparece à luz do dia, com o palacete que à noite brilhava de letreiros piscantes e onde a entrada era proibida, a não ser para homens realmente importantes. E penso que para esses homens, quando a noite cai, os tacos engordurados de madeira no veludo verde-escuro de repente se cobrem de ouro, as bolas se fazem de cristal e todo o entorno se transforma.
Você entra no grande salão a princípio mal-iluminado (demora para as pupilas se ajustarem) e se senta na mesa, toalha xadrez e galheteiros de vidro, uma dentre as quarenta mesas postas em fileiras ao lado do bufê. Do teto uma estrutura rebaixada de madeira, como o convés de um navio virado de ponta cabeça, retangular e que de um lado se arredonda, rodeada de luz verde neon (em alguns lugares piscando-falhantes…) e o centro de vidro espelhado, que reflete de volta o xadrez das toalhas. Imagino como à noite, retirando-se o bufê e todas as mesas e cadeiras, sob a luz neon o salão se converte numa pista de dança, de algum lugar desce um globo refletor, e ao som do jazz dançam homens importantes com alegres raparigas.
Pela lateral do navio uma câmera espia o balcão de talheres — grandes, pesados garfos lavrados de aço meio riscado, daqueles que já não se fabrica hoje em dia… — e fico imaginando como nesse mesmo lugar à noite roda uma junkie box ou, quem sabe até, uma roleta; que esses homens com ar grave e pensativo se colocam ali, de olho nas fichas e no dinheiro, e quando um é pêgo trapaceando começa uma briga, o bandido saca um desses garfos e crava ao peito do adversário, mas já logo vem o segurança, pega-o pela gola da camisa e adeus.
Enormes seios quase saltando do decote, tatuagem no ombro e olheiras, a moça do caixa pega o dinheiro da tua mão sem falar boa tarde. Das mesas é possível vê-la no balcão, com bebidas ao fundo, de onde às vezes ela sai para atender misteriosos telefonemas. Sempre aquele olhar triste, esquivo e sobretudo cansado, como que há dias sem dormir. Imagino como à noite ela se transforma: a rainha do baile! Em seus olhos se acende um fogo, ela solta os cabelos, balança os ombros e, a depender da música, seus seios de fato saltam, ela mesma salta do balcão — o balcão outrora tristonho, em que pousavam moscas sonolentas, de repente piscante e com garrafas de wiskey abertas e drinks fosforescentes —, dança na pista e ocasionalmente senta no colo de um desses homens importantes. E de igual modo as garçonetes, que trocaram os aventais pelas cintas-ligas.
Rente ao teto de madeira nobre, ao longo de todo o salão corre um encanamento vermelho, e dele para todas as direções jorrará água, se numa dessas noites de orgia um desses homens com mulheres no colo se esquecer do cigarro aceso roçando na cortina, e então tudo se acender, a começar pelas gravatas, e ir subindo, subindo o fogo já incontrolável pelo dispositivo anti-incêndio, até que o teto caia sobre essas importantes cabeças.
O toilette — ah, o toilette… simplesmente opulento! Todos os dias, com ou sem necessidade, impreterivelmente eu o visito! Os mictórios com sachês envelhecidos se transformam em verdadeiros tronos de mármore para que esses homens importantes mijem e caguem, podendo a seguir secar as mãos em toalhinhas que as faxineiras, sem que ninguém as perceba, trocam por novas a cada cinco minutos.
Esqueci de falar no principal: o bilhar. Principal e todavia inacessível. As mesas de bilhar, para nós mortais que sentamos nas mesas xadrez, mal são visíveis lá no fundo, atrás do biombo, uma área reservada, sempre na penumbra, para ser acesa só de noite e mesmo assim à meia luz. Para lá tenho até medo de olhar. Decerto é um lugar sagrado, o altar das diversões e do gozo, onde também se acertam negócios, encomendam-se assassinatos, o salão dentro do salão, o palácio dentro do palacete, diante do qual possivelmente há de terno um segundo segurança, como um serafim, para só permitir a entrada dos mais importantes dos importantes. Lá os tacos são de ouro, e são de ouro também as mesas, os talheres e galheteiros e mesmo os homens não têm nas veias sangue, e sim ouro, ouro, ouro. Lá o fogo não chega, nem Deus e nem lei.
E aqui estamos, numa dessas quarenta mesas com sebosas toalhas xadrez e no prato salpicão e tortilhas a 13,90 à vontade e 31,90 o kg. Mas chegará a nossa vez de gozarmos o seu ouro!
O Mistério dos Contêineres verdes
“Frequentar de uma padaria o balcão ‘Pães com desconto’, morder as roscas murchas, os sonhos empastelados, as broas esfarelentas, os pãezinhos amanhecidos, os bolos às vésperas do vencimento, todos os dias pensando: ainda vou crescer economicamente a ponto de saborear essas delícias saídas do forno!” (Anotação no meu caderno)
Desde que a superintendência de saneamento instalou em cada esquina um contêiner verde, algo diferente pairava no ar. A princípio, os estabelecimentos comerciais jogavam ali o seu lixo — os restaurantes esvaziavam dos bufês os restos de comida; os mercados, das prateleiras, os produtos vencidos; as lojas de sapato, de seus estoques, caixas de papelão com naftalina — e lá também dispensavam seus sacos de sanito os condomínios residenciais. Os contêineres tinham capacidade para duzentos e cinqüenta quilos, quinhentos litros, podia-se jogar neles de tudo à vontade: parecia impossível chegar à tampa. É verdade que ao fim da tarde os contêineres, à espera do caminhão, começavam a feder, e quem pela calçada caminhasse era obrigado, senão a tapar o nariz, a apressar o passo e, de preferência, para o outro lado da rua onde, na próxima esquina, toparia com outro contêiner. Importante é que os contêineres verdes, com altura de pouco mais de um metro e o corpo resistente de polietileno, não podiam ser virados pelos cachorros, como o eram as latas de lixo tradicionais. De modo que, se o caminhão deixasse de passar, no dia seguinte o contêiner continuava ali, firme e forte, com a tampa entreaberta espiando desde a rua os portões dos prédios e estabelecimentos. De repente, um barulho: a bocarra se abriu, engoliu mais um saco, e escapou a faxineira, aliviada, soltando a respiração.
Finalmente, o caminhão de lixo! Essa é a parte mais fascinante: os homens em macacões laranja correm gritando e — o que pensam vocês? que se cortarão nos cacos de vidro? — encaixam as alças dos contêineres na alavanca e, de dentro do caminhão controlando a manivela, o motorista despeja na caçamba onde os dentes do moedor a tudo engolem num minuto. Cem por cento automatizado! Quando o caminhão solta os contêineres verdes de volta na calçada, um estrondo se produz, som misterioso que vem de seus interiores ocos, prontos para serem mais uma vez preenchidos com restos de comida, produtos vencidos e caixas com naftalina.
Os tempos foram se passando, as superintendências se sucedendo uma à outra, e os contêineres já não pareciam tão bonitos e lustrosos. O verde claro, esmeraldino, dos contêineres outrora novos, foi se tornando escurecido sob as manchas e crostas. A alavanca do caminhão deixou nos corpos de polietileno a marca de suas garras. Mas não só do caminhão eram as garras, nem tão somente dos cachorros; unhas humanas também os marcaram. Sim, as pessoas começaram a perceber que naquele lixo nem todo o resto havia se estragado por completo. Quem pela calçada caminhasse, além de prender a respiração, era obrigado a desviar dos humanos que trepassem nos contêineres, ou que estivessem de lá saltando, vitoriosos, com uma perna esticada e um saco na mão. E o papelão, que de noite em qualquer canto vira leito. Então as pessoas começaram a feder como os contêineres verdes, embora tanto fizesse, afinal, havia tempo que pelas ruas já não se podia andar, senão com o nariz tapado.
A situação piorou quando os lixeiros entraram em greve. A superintendência quis negociar, voltando atrás na questão do seguro-desemprego, mas era tarde. Aos contêineres verdes já não estrondava o caminhão, senão as pernas, aquelas mesmas que outrora corriam a seu encalço. Pernas fortes, trabalhadoras, que se negam a galgar o lixo, facilmente viram de ponta cabeça um contêiner. Mas as bocas, por mais poderoso que seja o seu grito, precisam de qualquer forma comer, e afinal o lixo está sempre aí. Sem que o caminhão voltasse a rodar, a greve dos lixeiros foi se desfazendo, até que se “pacificaram” seus últimos restolhos. Agora na cidade, além de silêncio, faz um fedor de arrepiar os cabelos, como nunca antes fizera. E nos contêineres verdes, além dos restos alimentícios e caixas com naftalina, apodreciam, em seus macacões laranja, os cadáveres de muitos desses revoltosos.
Houve quem se incomodasse profundamente e até quem se escandalizasse. Mas se uma mão tapa o nariz, resta outra com que tapar os olhos. E todavia houve quem tivesse boca para comer e, com os contêineres cheios e as barrigas vazias, os cadáveres não pareceram um empecilho. As pessoas que saltavam dos contêineres verdes, com nas mãos uma perna alheia, amputada e necrosada, começavam também elas a cheirar cadáver, e pelas ruas, além de tapar o nariz e os olhos, não raras vezes era preciso correr do ataque zumbi. Os seguranças dos restaurantes e mercados e lojas começaram a “abater preventivamente”. E, como não havia mais faxineiras para os jogar nos contêineres, nem lixeiros para os transportar ao caminhão, eles apodreciam ali mesmo, no pavimento da calçada. Os clientes, de nariz tapado, saltavam sobre os cadáveres e entravam nos restaurantes, cujas janelas foram cimentadas e os portões reforçados; seguranças munidos de metralhadoras protegiam as embalagens dos mercados, e as lojas lançavam mais e mais naftalina nos contêineres para conter a infestação. Um biscoito de maisena estava custando o olho da cara, olho que poderia ser arrancado da cara alheia ou da própria, não importa: já ninguém mais queria ver, nem respirar, nem viver, embora comer muitos quisessem.
Entendendo-se com a crise, os restaurantes começaram a segurar em seus bufês os restos, e os mercados em suas prateleiras os produtos vencidos, os quais vendiam por trinta, quarenta, cinqüenta, setenta por cento de desconto, mas nunca botavam para fora no lixo. Os que tivessem olhos na cara e nariz para tapar, mesmo assim iam ficando verdes, não de fome e sim porque a podridão que comiam era de primeira qualidade. Já aqueles, que ficaram para fora dos restaurantes e mercados, mas viviam e morriam dentro dos contêineres, primeiro ficaram verdes, depois roxos e pálidos, até que o tempo os varreu. A isso não se premeditou como medida sanitária, foi apenas um reflexo da curva econômica: tendo a podridão valorizado seu preço e os restos não mais sendo lançados aos contêineres, até o último cadáver foi comido pelo último zumbi a quem por fim comeu o cão. E tudo foi voltando ao normal outra vez, já se podia andar pela rua sem tapar o nariz e da calçada lhe espiavam, com a boca entreaberta, os pacatos contêineres verdes.
A Dama da Noite
Quando há dez anos se instalou em Paraíso das Garças uma refinaria petroleira, o negócio foi anunciado como uma promessa, para toda a região, de geração de riquezas, emprego, infra-estrutura… Na prática, asfaltaram-se algumas vias, por onde passam grandes caminhões de cenho franzido; das cancelas de um condomínio fechado com nome francês saem e entram automóveis de luxo, que disputam vagas nas garagens do supermercado Pão de Açúcar ou da escola Waldorf. Mas nos rincões próximos a vida continua a mesma: as galinhas atravessam as ruas de terra sem receio, o som dos cortadores de grama ecoa dos quintais e, nos pontos de ônibus, demarcados por simples estacas no chão, os vizinhos conversam sobre as vidas uns dos outros. Apesar do tom apocalíptico com que pintam o horizonte as torres da refinaria, sempre cuspindo bolas de fogo e nuvens espiralando no ar, até que é bonito de ver. Dá a sensação de permanente crepúsculo, mesmo à noite, a luminosidade alaranjada nos jardins, já numa hora em que só se ouve, lá no fundo do curral, o bater de orelhas de uma vaca e, às vezes, vindo da estrada, a trombeta nervosa de uma buzina de caminhão.
Seo Manoel nunca desistiu do sitiozinho. Criar animais, regar as plantas e sentar na rede com o chimarrão, é seu estilo de vida. E sua paixão — porque todo homem, até o mais provençal, cultiva sua arte — a criação de flores ornamentais: orquídeas, gardênias, crisântemos… e sua predileta: a dama da noite. Só uma flor realmente mágica é capaz de encantar, depois que toda a ilusão do mundo visível escureceu, sem o artifício da cor, guiando seu amante pelo jardim, pela simples doçura do perfume, até o lugarzinho na estufa onde o aguarda, na posição de sempre, a cadeira de espreguiçar.
Seo Manoel já é um senhor de idade e, cheio de vida, quer viver mais de cem. Por isso trocou o cachimbo pelo chimarrão. Todos conhecem os malefícios do tabaco. Além do mais, para os jovens são insignificantes as oscilações na qualidade do ar, mas desde que essa pigarra começou e o chiado, de leve, no peito, as idas ao médico se tornaram uma constante. O doutor garantiu que os enfisemas não devem piorar, basta seguir algumas recomendações, a principal delas: evitar o contato com a fuligem. Fácil falar! Nas horas críticas, em que as labaredas se levantam alto das chaminés, ela cai, como pequenas pétalas cinzas, sobre a grama ou o piso da varanda, até se desfazer com o vento, e de modo geral está assim, dissolvida no ar, imperceptível aos olhos, sem cor, ao olfato, sem odor, mas em todos, todos os lugares. Abrindo-se o armário da cozinha, atrás de um prato ou cumbuca, na fina camada de cinzas pode-se desenhar com o dedo um coração.
Seo Manuel é um homem humilde, um tipo rústico e, não obstante, também conhecedor dos prazeres. Uma vida normal, com tudo a que tem direito, o doutor recomendou, bastando seguir as tais “recomendações”. Na mais segura delas seo Manoel investiu bem umas quinze parcelas de sua parca aposentadoria. Foi a primeira vez que entrou no Outlet Shopping Mall, por entre os automóveis de luxo, com o seu carrinho de feira. Carrinho que nunca transportara nada igual. Lá está ela, na cômoda ao lado da cama, junto à dentadura, olhando para ele. Estamos falando não de uma simples máscara hospitalar, mas uma daquelas, com um par de tubos laterais, que purificam o ar e fazem um barulhinho robótico, puro fetiche. Talvez pareça estranho, estar a todo o tempo com um segundo rosto colado ao seu, mas quando se prova sua utilidade, como óculos, por exemplo, já não se pode viver sem, e se descobrirá que a máscara inclusive tem seu charme. Respirar, com certeza, ar puro, livrar do tórax o peso de tanto puxar e puxar o ar, pesado de fuligem, que baforam as chaminés. Mas também sentir-se jovem, vigoroso e, até mesmo, imortal por um momento; afinal, enquanto o rosto envelhece, a mascará de lata permanece a mesma, respirando por ele e — ai! — ora arfando, ora rosnando, ora gemendo, a depender da emoção no momento: a tudo ela capta, sutil!
Seo Manoel só tira a máscara em certas situações. Beijar a Dona Raimunda, já se tornou raridade. Mas sim, todo santo dia comer a sopa que ela com carinho prepara: cebola, beterraba, mandioca e tudo o mais que dá em sua horta. Galinheiro também há no seu jardim. E, claro, ela — a sagrada, — a estufa: o único lugar, o paraíso onde Seo Manoel se despe de sua máscara — aqui não é preciso! Aqui há o perfume das flores. E para esse perfume a máscara não serve (o seu único defeito!), a quintessência que ela não consegue captar! Para esse perfume até as narinas desejariam deixar de ser narinas e sugar o néctar como pela bomba do chimarrão, ser um beija-flor mecânico e vibrante de prazer.
Seo Manoel chega, adentra aquela atmosfera milagrosa, senta-se na cadeira de espreguiçar e, retirando com a mão a máscara, declara à Dama da Noite o seu amor. Dos ramos, iluminados pelo distante apocalipse das chaminés, brotam uns olhinhos brancos, como pequenas trombetas soltando doçura, a prova de que o paraíso é aqui, nesses 50 m2 da estufa, envoltos numa tela como num véu de noiva. Pensar que os homens derretem pedras, detonam montanhas, constroem e destroem usinas inteiras para destilar o que não vale, nem seu mais valioso diamante, uma gota desse mel. E ainda pagar esse preço: cinzas no ar! Refinaria, eles dizem; e nada é mais refinado que o perfume dessa dama. Pensar que os homens mais poderosos enriquecem, levantam muros e, podendo comprar os vinhos mais caros, vivem infelizes por não ter um desse cálice perfumoso. Nesse momento Seo Manoel se sente um rei ao lado de sua rainha. Só ele conhece o segredo, e sorri. Esse sorriso, que em breve levará para a tumba, por hora ele tapa com a máscara outra vez, recomeça o barulhinho da respiração artificial, e Dona Raimunda já deve estar com o jantar à mesa.
André Bacciotti Nogueira: nascido em 1987 na cidade de Herdecke, Alemanha Ocidental. Registrado cidadão brasileiro no Consulado em Munique. No Brasil desde 1991. Vive atualmente na cidade de Campinas. Formado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas e em Literatura e Cultura Russa pela Universidade de São Paulo. Tradutor, poeta, etc. Autor do livro O presidente me quer morto (Editora Urutau, 2019).