Romãs e Cigarros
A mãe da sua mãe era uma pessoa amarga que sabia fazer bolinhos fritos como ninguém. Tinha cabelos cinzas e tetas grandes. Gostava de usar vestidos com estampa de florais pequenos em cores delicadas. Sempre usava saia de baixo bege com uma pequena renda na ponta que ficava à mostra quando ela subia escadas ou se sentava. Falava alto mesmo quando queria apenas sussurrar.
A velha se chateava muito; se chateava com a filha, se chateava com o marido da filha, mas se chateava ainda mais com a filha da sua filha, que sempre lhe pareceu uma aberração, uma guria que ia ao encontro de algo terrível, mundano, descendo apressada os degraus da degeneração.
Sua avó tinha um lindo pé de romãzeira que ficava afastado da casa. Era um único e lindo pé de romã cercado por pés de laranja do céu. E foi lá, próximo à árvore que floresce na primavera projetando sua exuberante coloração vermelha, onde tudo começou, onde a tragédia deu seu primeiro sopro.
A tal senhora não entendia que a neta tinha apenas nove anos e que era uma menininha solitária, sem amigos na escola, sem nenhum garoto do bairro que gostasse dela e com o desprezo dos seus primos, que nos almoços de finais de semana sempre a deixavam apenas com a televisão. Não entendia que ela era uma criança tímida e cheia de medos. Teimava em afirmar que a menina era má e pervertida.
Um dia a velha encontrou a neta fumando um cigarro Shelton longo, embaixo da árvore de romã. A menina estava de salto alto, uns cinco ou seis números maiores que seu pé, com uma carteira grande azul celeste embaixo do braço e usava um batom cor de laranja. Quando foi descoberta foi como se uma nuvem escura pousasse na sua cabeça, só lembrava das palavras, pervertida, porca, demônio, enquanto seu cabelo era violentamente puxado. Depois de muito choro, a cumplicidade perversa: este é um segredo meu e teu, se tu andar na linha, e fizer o que eu pedir, ninguém nunca vai saber de nada.
A menina se viu obrigada a seguir o catecismo da avó para não correr o risco de passar pela vergonha de seus primos, colegas e vizinhos de bairro ficarem sabendo do que aconteceu.
A criança passou a ter que aceitar a companhia da avó na ida e na volta do colégio, todas as sextas-feiras. Também recebia visitas surpresas no recreio quando era humilhada pelas constantes chacotas proferidas por ela. Além disso, foi obrigada a aceitar todos os convites para ir aos cultos na igreja e passar as tardes de sábados na casa da velha. Nunca se queixou, nunca se negou a nada, continuou obedecendo submissamente.
A avó queria provar que não estava errada. Acreditava que a neta era má, era pervertida. Por isso deixou a revista pornográfica de sexo explícito exposta em cima da estante naquele sábado, assim como deixou de propósito aquele maço de notas de cinquenta em cima da sua penteadeira e não a convidou para ir ao culto naquela tarde, dizendo que ela poderia ficar vendo televisão e comendo bolinhos fritos.
A criança sozinha na casa, com apenas nove anos, foi ao antigo quarto da tia, pegou os sapatos de salto alto, passou blush, sombra, batom. Revirou o roupeiro atrás de uma bolsa de pedras coloridas da qual tanto gostava. Encontrou. Roubou um cigarro e o isqueiro que estavam na gaveta da cômoda. Foi até a sala, pegou a revista pornô, colocou na bolsa. Quando estava para sair, olhou para dentro do quarto e viu aquele monte de dinheiro, passou reto, saiu da casa em direção ao pé de romã. Sentou sob a copa fazendo uma pose sensual, imitando uma das mulheres da revista, acendeu o cigarro, começou a folhear a revista.
A avó entrou silenciosa dentro da casa. Pé por pé, foi até a sala, não havia ninguém. A revista havia sumido. Foi até seu quarto, pegou o dinheiro e contou. Nenhuma nota roubada. Saiu tentando não pisar em galhos nem folhas secas, foi até o pé de romã. Lá encontrou a neta com um cigarro numa mão, seu ainda inexistente seio na outra e a revista pornográfica aberta no chão. Ao invés da fúria, as risadas descontroladas e a sentença: eu sabia.
A garotinha saiu fugida deixando os sapatos para trás com seus saltos cravados na terra. Entrou na casa e guardou a bolsa onde a pegou. Escondeu a revista dentro da estante bem atrás dos volumes da enciclopédia Barsa. Mudou de ideia e pegou a revista de volta. Foi até o quarto da avó. Entrou, encostou a porta e ficou escondida.
A sua avó nunca foi uma mulher fácil. Seu marido era um bom homem, mas parecia triste quando ela estava por perto. Seus cinco filhos não a suportavam, era visível. Mas seguiam vindo nos finais de semana para uma visita. Promessa feita ao pai antes dele morrer. Nem por isso, como todos diziam, ela merecia morrer do modo que morreu. Esmagada por aquele roupeiro gigante de madeira maciça. Diziam que era de carvalho. Diziam também que ela pode ter morrido por asfixia, já que o socorro demorou muito a chegar, pois a única pessoa que estava com ela naquela tarde, brincava em baixo do pé de romã e só voltou para casa quando começou a escurecer.
A netinha até hoje diz não ter escutado o barulho do roupeiro caindo, mas diz lembrar da avó segurando um maço de notas de cinquenta, pedindo para que ela se sentasse em seu colo para lerem juntas uma revista que ela própria nunca tinha visto na vida. E foi assim que a encontraram quando conseguiram tirar o roupeiro de cima dela: com o crânio esmagado e segurando um maço de notas de cinquenta e uma revista pornográfica.
| trecho do romance Ao pó (Editora Patuá, 2020), saiba mais no [link]. |
Morgana Kretzmann nasceu na cidade de Tenente Portela, interior do Rio Grande do Sul, hoje vive em São Paulo, é escritora, atriz, roteirista e produtora cultural, com prêmios nacionais e regionais. É editora da revista cultural RevistaRia, da Ria Livraria. Também é formada em Gestão Ambiental pelo Instituto Federal de Santa Catarina. Ao pó é seu romance de estreia.