Foi como ver um fantasma. Era o Joey mesmo vindo na direção contrária na faixa de pedestres? Havia sempre tanta gente atravessando a Conde da Boa Vista, seria ele? V. interrompeu a marcha, esperando que o velho amigo cruzasse seu caminho. Era ele, sim. O mesmo rosto de cavalo triste, o mesmo caminhar de orangotango. “Cara, é tu!” Sem parecer ter escutado, Joey virou o rosto pro outro lado e seguiu. V. ficou ali, vendo seu primeiro grande amigo tratá-lo como um panfleto de dieta, enquanto carros e motoqueiros, enxergando-o muito bem, espremiam suas buzinas para o basbaque paralisado na rua mais movimentada do centro.
Eles se conheceram quando tinham doze anos de idade no colégio Dourado. Joey viera do período da tarde para o da manhã. Falava rápido demais, com um sotaque do sul. No recreio, conversaram sobre Cavaleiros do Zodíaco e Mega Drive. Ficaram melhores amigos.
Às tardes, V. ia na casa de Joey. Dona Lúcia, mãe dele, uma velhinha de olhos felizes, preparava uma baita de uma galinha com farofa. Ela fazia os meninos rezarem antes de comer, depois contava algumas histórias sobre anjos que ficam de olho na vida dos humanos. Joey disse qual era a religião deles, mas V. nunca conseguiu lembrar o nome. Faziam o dever de casa, jogavam videogames e tomavam banho de piscina. “Teu pai deve ser rico”, disse V. Joey morava em cima de uma padaria, que pertencia a sua família. Perto das seis da noite, um cheiro macio de pão invadia a sala. Dona Lúcia falava um pouco mais sobre espíritos caridosos enquanto os meninos comiam pão com margarina e esperavam o pai de V. ir buscá-lo.
Demorou um bocado para que V. enxergasse em Joey o que os outros conseguiam com tanta facilidade.
Joey raramente dizia coisas sem se babar um pouquinho. Quando jogava futebol, parecia ter mais pernas que um polvo; se enroscava nelas caindo de bunda no chão duas de quatro vezes em que recebia um passe. Era muito alto pra sua idade, mais alto até que os professores, porém nada atlético, o que o fazia pender de um lado ao outro quando andava, como o simpático personagem do filme E.T. Havia em seu rosto como que duas bengalas de costas uma para a outra compondo nariz e sobrancelhas. Os olhos pareciam uvas chupadas e cuspidas por alguém que as detestou, e a boca não era mais que um rasgo rugoso na pele. Os meninos gostavam de chegar bem pertinho dele, tocar o indicador na ponta do nariz de Joey e dizer: “E.T., telefone, minha casa”. As meninas riam sobremaneira.
Uma vez que viu, não conseguiu mais desver. Primeiro, V. presenciou Eduarda e Marcela dizendo a Joey que tinha meleca saindo do nariz dele. Ele se punha a enfiar o dedo na venta e contestar. “Não tem nada, tão vendo?”, fumaçava, erguendo o anelar. As meninas gargalharam tanto que começou a sair meleca do nariz delas. Depois, foi quando encontrou o amigo no centro de uma roda sendo interpelado sobre a existência de anjos e espíritos. Os meninos atiravam montinhos de areia molhada na boca e olhos de Joey toda vez que ele dizia a palavra “anjo da guarda”.
Naquele mesmo dia, enquanto caminhavam para casa, V. disse ou suspirou: “Tu sois meio retardado”. Trilhou o resto do caminho pelo menos cinco passos à frente do colega. Foram almoçar, como era de costume, na casa de Joey. Dessa vez, a pele da galinha estava gelada e a farofa sem tempero. Dona Lúcia, V. percebeu, tinha um nariz estreito e lacunoso como o do filho. O cabelo grisalho e sem vida daquela velhaca fazia o hábito da reza parecer um filme de terror. E que família era aquela cujo pai só aparecia uma ou duas vezes ao mês? Depois do almoço, V. não quis jogar futebol de botão nem assistir à Sessão da Tarde, nem tomar banho de piscina. Joey sugeriu que fossem comprar sacolé na padaria. Mas a verdade mesmo era que aquele cheiro de fermento de pão o dia inteiro na casa do colega só dava vontade de vomitar. V. respondeu que ele precisava ir pra casa. Depois de levar V. até o portão e se despedir, coçando com aperreio os olhos, Joey disse: “Acho que você é meu anjo da guarda”.
Foi a gota d’água. Não bastava ser o único e melhor amigo de uma criatura do Spielberg, tinha que ainda por cima bancar o anjo da guarda da coisa! Quando viu Joey no dia seguinte, tratou de ir sentar bem longe. Na aula de Educação Física, fez de tudo pra não ficar no mesmo time do E.T. No primeiro recreio, ficou do lado de fora do colégio contando fuscas por vinte e cinco minutos. No segundo recreio, fingiu uma dor de barriga e lá se foram dez minutos no banheiro. Joey o aguardou com olhos tão grandes quanto luas cheias. “Tá melhor?”, perguntou quando V. saiu. Mas a decisão já fora tomada: V. não iria mais dirigir uma palavra que fosse àquela criatura. Sendo assim, passou reto. Quando chegou a hora de ir embora, Joey se aproximou com suas passadas tortas, os ombros banzeando pra por as alças da mochila no lugar. “Tás pronto?” Nenhuma resposta. V. ergueu a mão para alguém que já ia saindo da sala. “Espera aí!”
Nos dias seguintes, Joey virou um fantasma desconhecido até mesmo pelo seu anjo da guarda. Não raro, V. o surpreendia lançando-lhe olhares de longe. Esquisitíssimo. O fantasma perambulava pelos cantos passando o dedo em buracos de parede. Nos recreios, comia coxinha escondido no fundo da escola, que estava em perpétua reforma. Os meninos pararam de jogar areia na cara dele pois ele já não falava que espíritos são mágicos; as meninas não tentavam mais fazê-lo chorar porque Joey já não perdia a calma, aí não tinha graça.
Mais um mês desse jeito e um dia desapareceu. Alguém disse que ele pedira à mãe para ser transferido. Quatorze anos depois, Joey passava reto por V. na Conde da Boa Vista, parecia até mesmo erguer a mão e chamar alguém que vinha descendo a calçada. Carros e motos não esperaram pela boa vontade do rapaz imóvel depois de o sinal já estar verde por uns dez segundos; avançaram barulhentos tirando fino de V., que escutou de um motoqueiro: “Tu é retardado, mermão?”
Aquela frase que um dia disse para aquele amigo. Um gesto irrefletido, de peso quase inexistente mas com ampla esfera de ação, como a pata de um besouro que não perfura o orvalho, por ora. Após tantos anos não devia mais ser difícil enxergar por que incontáveis vezes V. escolheu a garota mais bonita em lugar daquela que o faz sorrir, a cidade em que as luzes piscam mais forte, a língua mais falada em lugar da mais sonora, os amigos mais experimentados em lugar dos que aprendem da vida juntos, as drogas mais silenciadoras, as relações rarefeitas em lugar das porosas, o que há, enfim, de mais terráqueo nele próprio em lugar do extraterrestre.
Victor Toscano nasceu no Recife, onde estudou psicologia e Jornalismo. Venceu o concurso da Editora Benfazeja e publicou o livro Breves Delírios (2018). Seu segundo livro, O último minuto custa a chegar, mas é maravilhoso, saiu pela editora Moinhos no mesmo ano.