Brasil: (im)possíveis diálogos #24

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

Luzia

Por Maira Garcia

printemps_ficcao
Vitor Rocha

Ela atendeu o último cliente e ascende a luz amarela atrás do Sol que faltou naquele quarto. O olho borrado vai manchar o lençol. Quando for uma hora, a mãe dela vai ligar para falar como anda a menina, o que aprontou na escola, o que descobriu sem ter ela por perto. O quarto deserto recolhe as sombras do dia. Perto das duas horas, depois do choro, toma um banho, esfrega o azeite no olho e aproveita pra tirar a maquiagem. Toma um leite morno, veste o short de malha e a blusa de gorro e apaga o Sol ao se esconder debaixo da manta bordada da avó. Pede pra sonhar com a filha, e que Deus a proteja que amanhã ainda é dia.

* * *

O mundo está acabando,
disse uma matéria
do jornal
que embrulhava o peixe
Na feira.
O mundo está acabando
e quando acabar
eu quero ver você
pra gente arrumar
a casa que a gente vai morar.
A casa que vai receber o jornal
dizendo que o mundo não acabou.
Que era tudo fake news.

* * *

Você tem dormido
comigo e não sabe,
sinto sua batata
da perna
quando abraço
suas costas,
sinto outras coisas
mas dizer seria
um embaraço,
não importa.
Então continue dormindo
comigo,
eu agradeço a preferência,
tem sido a alegria
da minha quarentena
contar com a sua perna
e presença.

* * *

Ouço o barulho
lá fora,
Sinto medo.
O barulho lá fora,
E você aqui dentro
É silêncio.

Maira Garcia nasceu em Ribeirão Pires, uma das cidades que integram a Grande São Paulo. Formada em Propaganda pela Eca-USP, é uma das mediadoras da Roda de Poesia e do Sarau Constelação Poética do Centro de Arte e Promoção Social do Grajaú, onde também é voluntária na Comunicação. Redatora, cantora e compositora, se assumiu poeta depois dos 40. Em 2011 começa o blog Depois da Lua de Ontem, hoje com mais de 3.100 textos escritos dentro do trem que sai do ABC para São Paulo. Em 2019, lança seu livro pela Editora Patuá, Depois da Lua de Ontem, onde se transfigura também em loba, astronauta e alienígena. No mesmo ano participa de mediações em rodas de poesia no Sesc São Paulo, nas unidades Interlagos, Itaquera e no Senac Aclimação. Em 2020 é selecionada para o Clipe de Poesia da Casa das Rosas e é convidada para a Primavera Literária Brasileira em Paris e Braga.