o valor do lixo, Luanda Julião

A riqueza e o desperdício de uma cidade podem ser mensurados em seu lixão, porque dinheiro sempre vira lixo e no lixão, lixo vira dinheiro.

No alto do morro, Dilermando avista as montanhas de lixo. Está a cerca de trezentos metros do lixão, falta só descer o aclive, mas já sente o seu cheiro fétido e dificuldades de discernir quem é homem, quem é bicho e quem é lixo. A nuvem de poeira tóxica e fedida que propaga no ar, levantada principalmente quando os caminhões descarregam entulhos de construção, cega a todos: motoristas, animais e homens. Ali todos eles se misturam numa única função: sobreviver.

Dilermando é um dos motoristas de caminhões que diariamente depositam no lixão uma média de cem toneladas de lixo produzido pelos cidadãos na cidade. Só a esse depósito de lixo, Dilermando faz duas, às vezes três viagens por dia. Detesta o lugar. Queria ser motorista de caminhão do correio ou de uma grande transportadora de móveis, mas há cinco anos o que ele transporta de um lado para o outro é lixo. Lixo de todos os tipos: orgânico, inorgânico, hospitalar, eletrônico, industrial, construção civil, restos de vegetais e de poda, carcaças de animais, alimentos vencidos. Tudo o que não serve mais, tudo o que não convém mais à cidade que fica a alguns quilômetros atrás do morro, é jogado no lado de cá, no depósito de lixo.

Todos os caminhões que chegam ao local são recebidos em festa pelos catadores, pelos urubus e pelos porcos. Dilermando gostaria de ser invisível nessa hora, pois assim evitaria acidentes e mortes. Quatro meses atrás, esmagou uma garotinha de oito anos. Não viu que ela estava atrás, esperando o lixo ser descarregado. A criança queria ser a primeira, ficar com o que eles chamam de “a nata do lixo”. Quem sabe, encontrar outra boneca ou um celular, como ela já havia achado uma vez. Distraído, falando com a mulher no celular e concentrado em olhar apenas o retrovisor esquerdo, Dilermando despejou oito toneladas de lixo em cima dela. Só conseguiram retirar o corpo debaixo do lixo depois dos catadores fazerem a triagem. Ele lembra com lágrimas nos olhos daquele dia.

Dilermando desce a última ribanceira com o caminhão. Em menos de um minuto entrará no campo de despejo do lixo. Ele sabe que precisa ser rápido, pois assim como os sedentos e famintos, os catadores não esperam. Correm desesperados em direção da carreta assim que escutam qualquer ronco de motor descendo o morro. Dilermando é cercado e sente vontade de afastar aqueles catadores de lixo da mesma forma que ele afasta as moscas que tentam pousar em seu rosto coberto de sujeira e suor.

Os urubus também atrapalham o trabalho de Dilermando. Sentem o cheiro de carniça nova antes de qualquer caminhão entrar no lixão. Ficam alvoroçados e assim como os catadores também cercam o caminhão atrapalhando a sua passagem. Permanecem voando em círculos até os catadores se afastarem daquilo que julgam não servirão para nada, mas que para as aves será um grande banquete. É assim que os urubus ficam quietos, estacionados em algum montante de lixo já vasculhado e abandonado pelos catadores.

Josefino, um dos tratoristas e funcionário do lixão, avista Dilermando que acabou de chegar e vai cumprimentá-lo.

— O que tem de bom aí? — pergunta Josefino

— Fala sério, Josefino! Tem algo de bom nesse lixão?

— Não se faça de desentendido, homem!

— Nada demais, lixo doméstico, só isso.

— Tô de olho em você, Dilermando. Seu último despejo de ontem tinha lixo hospitalar. Um dos catadores não viu e se feriu em uma das agulhas, indevidamente aqui descartada. Eu mesmo não acreditei quando vieram me contar e fui olhar. Achei restos de sonda. Daqui a pouco você começa a trazer lixo radioativo para cá.

— Não pega nada. Fica tranquilo, Josefino.

— Como não pega nada, Dilermando? — grita Josefino, irritando com o descaso de Dilermando. — Não quero ver meu lixão ir parar nas páginas dos jornais.

— Teu lixão, Josefino? Você é só mais um tratorista contratado aqui. Sobrevive do lixo igualzinho eu e os outros que colocam a mão na massa, ou melhor, no lixo.

— Na hierarquia daqui eu sou melhor que você e os catadores — protesta Josefino.

— E quem tá no lixo tem hierarquia? Você lá entende de hierarquia, Josefino? Aqui todo mundo fede igual, aqui todo mundo pisa na carniça.

Josefino coça a cabeça, sua frio, aperta os dedos da mão. Se não fosse a fumaça pútrida que pesa o ar e encobre a cor natural da sua pele, Dilermando conseguiria ver o tratorista vermelho de raiva. Um não gosta do outro, fingem amenidades, mas disputam poder e temor entre os catadores. Em terra de lixo e podridão, quem manda mais é menos tem que colocar as mãos na imundice. A poeira e o cheiro podre que permeia o lugar parecem contaminar o raciocínio e o instinto de todos os que ali tiram o seu sustento e sobrevivência.

— Não se faça de besta homem! — diz Josefino. – Sei muito bem que você ganha um dinheirinho extra dos hospitais da cidade para recolher a imundice de lá.

— Quem tem que se preocupar com isso é a prefeitura, que deveria multar quem desobedece a lei e não você que deve se preocupar em aplanar direito o lixo que eu descarrego — retruca Dilermando. — Se o hospital mistura lixo infectante com lixo doméstico a culpa não é minha. Isso não é problema meu!

— Tô só te observando, Dilermando! Quem tem coragem de despejar aqui lixo perigoso tem coragem também desembarcar bomba e até gente.

— Faço apenas o meu trabalho, Josefino! Transfiro pra cá o que é recolhido nas ruas pelos garis e coletores de lixo. Não tem como eu abrir o compactador do caminhão antes de despejá-lo aqui.

Josefino dá uma arfada e desiste de continuar discutindo com Dilermando. Tem muito trabalho a fazer, muito lixo para sobrepujar. Três caminhões despejaram tudo de uma só vez, num mesmo lugar, e o tratorista sabe que quanto mais tempo ele demorar em aplanar o volume do lixo, maiores serão os ratos e baratas que ali aparecerão para se alimentarem do lixo. “Já bastam os porcos”, pensa Josefino, mas logo em seguida corrige seu pensamento: “já basta a gente, catadores, caminhoneiros, tratoristas, políticos, empresas e todos aqueles que indiretamente ou diretamente exploram o lixo”.

Dilermando manobra o caminhão, puxa-o um pouco mais para frente para que os catadores não precisem se enfurnar debaixo do veículo. Depois acende um cigarro e fica observando a agilidade dos trabalhadores que metem sem hesitar a mão no lixo. Procuram plástico, metal, latinhas, vidros, garrafas pet e embalagens cartonadas. Tudo o que pode ser reaproveitado, os catadores pegam, porque vale dinheiro. Observa quando uma senhora encontra um frasco de perfume, vazio e sorri. Aquele recipiente desprezado depois do uso renderá vinte e cinco centavos a ela. Dilermando percebe o quanto aquela senhora toma cuidado para não cortar a mão. Parece ter perícia em mexer com lixos em que os cacos de vidro não foram embalados devidamente ou se quebraram no compactador. Dilermando olha a cicatriz que tem na mão direita e se lembra de quando quase a perdeu ajudando a mãe a separar o lixo orgânico daquilo que ainda pode ser reaproveitado e vendido.

Dilermando contempla o horizonte e o que vê é lixo em cima de lixo. O lugar está cada vez mais cheio. Se por um lado se aumenta a riqueza do lado de fora do lixão, em compensação dentro dele aumenta a pobreza e a miséria. De repente, escuta Josefino acelerar o trator, tentando espantar os catadores. Eles protestam, gritando. Parece que acharam algo valioso. É uma lavadora de roupa seminova. Deve ter no máximo cinco anos de uso, se bobear nem isso. Os catadores brigam por ela. Todos a querem, inclusive Josefino. Dilermando corre em direção ao lugar onde está o eletrodoméstico cobiçado. Grita para Josefino:

— Ô esfomeado, arria a guarda! Deixa o lixo pra quem depende dele!

Os catadores apoiam Dilermando e começam a vaiar Josefino, que desiste. Numa assembleia improvisada, em meio a resquícios e dejetos humanos, os catadores decidem dividir o objeto cobiçado. Usam as próprias mãos e desmontam a lavadora em questão de poucos minutos. Cada um sai feliz com a parte que lhe coube, uma ou duas peças. É o lucro do dia. Só a peça da lavadora de roupa vale mais que uma dezena de garrafas pet.

O vento trouxe mais nuvens, o céu escureceu, encobrindo o sol. Vai chover. Dilermando pensa no chorume. Odeia entrar em contato com a lama do lixo. Verifica a hora e se apressa em sair do lixão. Engata a ré e olha os dois retrovisores. Está se preparando para manobrar o caminhão, quando percebe que uma revoada de abutres se intensificou de repente. Ele olha para o céu e vê alguns abutres quase se chocarem uns contra os outros. Algumas penas se desprendem e caem, misturando-se quase que imperceptivelmente ao lixo. O último descarregamento de lixo foi algumas horas atrás, momento em que normalmente os urubus ficam ensandecidos com a chegada do lixo fresco. Agora é hora de caminhões voltarem vazios para a garagem e se preparem para mais uma coleta de lixo da população que não para de produzi-los.

Curioso, Dilermando coloca suas luvas de proteção e desce do caminhão. Caminha em direção aos abutres, tentando se desviar o máximo que pode dos lixos que estão por toda a parte. Os abutres percebem a chegando de Dilermando, que não é bem-vindo, e grasnam cada vez mais forte. Sentem-se ameaçados e continuam persistentemente sobrevoando o local. Dilermando olha para trás, pensa em pedir ajuda a outro catador, mas o vento forte levanta mais alto ainda a poeira de lixo e resto de entulho. Caminha com cuidado, tem medo de ser atacado pela multidão de urubus.

Dilermando observa todos os lados. Não há carcaças de animais, nem lixo orgânico protuberante ou saliente. Ao menos naquela parte do terreno, onde aparentemente os tratores passaram a pouco tempo. Um sulco de luz ilumina uma caixa de papelão. É ali que está o banquete dos urubus insaciáveis. Sem saber o que tem dentro, Dilermando a chuta. A caixa vira e ele tem um sobressalto quando percebe o que chutou: o corpo de um bebê recém-nascido, ainda de fralda, porém rígido e frio. Dilermando sente as pernas tremerem, o coração palpitar bem forte. Exceto pelas lesões causadas pelas bicadas dos abutres que deixaram buracos na pele, o bebê parecia dormir, como dormem os recém-nascidos.

Um dos urubus desce do céu e pousa na caixa. Dilermando o encara. A ave recolhe as asas e usa as patas afiadas para se aproximar do corpo do bebê. Seu porte cobre o único fio de claridade que iluminava o recém-nascido. Dá um salto e se debruça sobre a pele do bebê. Tem dificuldades em se equilibrar diante de um corpo tão pequeno. A ave encara novamente Dilermando como se o desafiasse. Está preparada para arrancar mais um pedacinho do bebê-cadáver, mas Dilermando é mais rápido. Acerta-lhe um chute tão forte que imediatamente o derruba. Sem perder tempo, Dilermando apanha o primeiro pedaço de tábua e destroça o pássaro. Os outros abutres ficam assustados e se afastam. Ele grita, mas ninguém o ouve. Sozinho, parado no meio do lixão, Dilermando chora. Não há mais nenhum feixe de sol no céu. A chuva cai e lava as lágrimas de Dilermando. O chorume molha os seus sapatos. Ele sente o líquido escuro e poluído perfurarem suas meias e molharem os seus pés, mas dessa vez ele não se importa.

Luanda Julião nasceu em São Paulo em 30 de junho de 1982. Atualmente cursa doutorado em Filosofia na Universidade Federal de São Carlos. É professora de Filosofia e História numa escola estadual no bairro do Ipiranga, na capital paulista. Publicou pela Editora Patuá, em setembro de 2018, seu primeiro romance: A ária das águas.