o asfalto da rua de casa era mal feito.
não é para reclamar. a rua de baixo nem sequer era asfaltada. mas era assim. restos de massa batida nas frentes das casas mal limpas nos finais dos dias de obra. irregularidades buracos pedras soltas. nas horas mais quentes derretia o piche um pouco e isto grudava nos chinelos.
a combinação do calor que era preponderante nos anos e o tipo tosco do asfalto dificultavam andar descalço. jogar bola então nem se fala. estouravam todas as correias dos chinelos de dedo bem impróprios ao futebol. e sem eles estourava a sola dos pés. fazia bolhas que depois também estouravam. ficava o sangue no asfalto. e um dedão destroncado. com a unha virada pra cima na topada com a massa mal limpa das obras. o furo da pedra do caco de vidro enfiado. bater o que já estava batido e ainda incurado. o asfalto com pus. pedaços de pele que ficavam pelo caminho. numa partida de esconde-esconde. ou de golzinho.
tudo isso me fazia crer que eu precisava muito um par de tênis. mas não dava. tinha um conga pra sair e era só. visitar a vó noutra cidade. sem correria na escada com os primos. ir à igreja ao shopping ver as coisas. mas não pode pedir nada. apenas vamos passear.
mamãe trabalhava de chinelos. lavava a roupa de casa e da casa dos outros. passava a roupa de casa. e da casa dos outros. limpava a casa dos outros. fazia geladinho pra vender pros outros. tudo de chinelo. batiam palma em casa pra gente vender mas chupar não podia. só de vez em quando. tinha que ajudar era difícil. o suco vazava tudo era prejuízo. a gente andava descalço em casa e o chão melava todo.
a gente voltava descalço da rua o pé preto sujando o piso e era tapa na orelha. vai lavar o pé no tanque. bronca berreiro. a mãe batia na bunda da gente com o chinelo. e cinta espadada de são jorge vara. mas de vez em quando dava um bom banho de tanque. com carinho. tinha bacia calma e pente fino pra tirar piolhos. sunga e biquíni de tomar sol pelo quintal. mãe jogava junto com a gente umas coisas dava risada era bonito. o abraço. o colo da mãe. mas batia na gente quando a gente apanhava na rua. quando caía quando machucava na rua. esfregava forte a bucha com sabão pra não infeccionar. e não vai arrancar essa casquinha.
dava janta pra gente fumava um cigarro assistia novela. chorava escondido. pegava o ônibus com o caçula pra ir nos médicos. trabalhava em casa nas outras casas. trabalhava pros outros. e a gente também era um tipo de outros. fazia sempre pra gente nunca pra ela. a gente dava trabalho. tudo era os outros.
seo zeferino vez ou outra dava abacates maduros pra nós. ela amassava tudo num prato. botava com açúcar. pingava limão. e a gente sentava na sala em roda no chão. uma colherada pra ela e uma pra nós rodando assim. ela ajeitava as nossas colheres lambendo as beiradas pra não derrubar. numa vez dessas no intervalo do jornal eu vi a propaganda. do rainha system. eu achava o nome um pouco engraçado mas o tênis era demais. eu disse mãe olha que lindo. ela me deu o abacate.
pouco tempo depois o fabrício apareceu na escola com um daqueles. desceu do carro do pai já chamando toda atenção pra ele. a gente chegava a pé. de chinelo. às vezes tinha arrebentado no jogo e se prendia remendando com um grampo ou um prego. tinha muitos que iam mesmo descalços pras aulas. mas de carro quase nenhum. só o fabrício mesmo a gláucia às vezes.
mas aquele tênis era fantástico. a gente seguia o fabrício o recreio inteiro pra ver. as cores o desenho. um amortecedor que o deixava mais veloz que os carros mais alto mais forte. mais bonito. a vanessa só quis conversar com o fabrício nesse dia. não teve pega-pega com o fabrício. mas se tivesse ninguém ia pegar.
fui pra casa encasquetado. cheguei nem tomei bença disse oi. só logo mãe preciso muito de um rainha system. sai de casa agora menino. e quando entrar de novo peça a bença. depois já passe reto e deixa a mochila lave bem essa boca. essas mãos. que o almoço tá pronto. depois cê vai cuidar do seu irmão que eu vou trabalhar na dona ângela.
os dias foram passando. o pus no asfalto. as unhas caindo. e um desafeto imenso foi me corroendo todo. meu caderno já não tinha mais cópia de nada da lousa. nem disputava mais as corridas de quem escreve mais rápido. que mesmo sendo corrida sem pés só com os olhos e as mãos sem meu rainha eu não podia. perderia tudo. não me casaria mais com vanessa. não seria bombeiro nem astrônomo nem feliz. meu caderno agora eram só desenhos de rainha. eu com eles em situações distintas. diversas delas.
eu de tênis.
quando peguei uma febre e não sarei com nada por sete dias nem com o benzimento da tia cicinha. nem compressa oração ou simpatia. o salmo sob o travesseiro. e emagreci feio enfiei os olhos pro fundo da cara com marcas e olheiras e a diarreia não parava. vovó perguntou à mamãe. o menino tá com vontade de quê.
mãezinha voltou do orelhão na praça da sorveteria e do ponto final do ônibus e levou uma sopa de bolacha na maior caneca de casa. sentou do meu lado na cama e enquanto eu resistia em comer ela me disse. rainha o quê.
system.
beijou minha cabeça pediu uns dias. e prometeu que trabalharia extra pra comprar um par. mas você precisa comer direito tudo. e sarar logo. tá muito magro perdeu escola. a mãe promete.
eu sarei na hora. copiava as matérias primeiro de todos. até do fabrício. passava o resto de tempo que os outros levavam para terminar desenhando ainda meu rainha. tive um impasse danado com as cores. quase deprimi. tive coragem de olhar e sorrir pra vanessa. pensei que poderia vencer qualquer asfalto com ele. os restos de massa batida a terra batida da rua de baixo tudo. os golaços que marcaria de calcanhar chapéu bicicleta. a invencibilidade no pega-pega o beijo na vanessa a inveja nos primos. e iam me contratar pra jogar profissional. gravar propaganda fazer novela. e eu ia ganhar muito dinheiro e tirar minha mãe do trabalho. comprar uma casa pra nós. muito maior com banheira e sem aluguel. com piscina e espaço pra ela plantar suas plantas. quantas quisesse. e um quintal grande pra um cachorro grande que vai no veterinário e tudo. tudo. e um carro me buscaria na escola para levar numa sorveteria bem melhor que aquela do bairro. eu e a vanessa.
tudo graças a ela. minha mãe. ela que afinal era uma rainha. isso sim fazia muito mais sentido que o tênis que devia ter outro nome qualquer. esse talvez fosse o seu único defeito. o único. o resto era perfeito. como mamãe. que era brava às vezes. triste às vezes. chata às vezes. mas era uma perfeita rainha. ela sim. minha rainha. eu tinha que agradecer pra sempre. e fazer tudo por ela. minha rainha. mãe.
e eu era seu príncipe. mas depois com meu tênis seria também o do mundo.
chegou num sábado e disse é hoje menino se arruma. ela tinha um sorriso de contentamento íntimo quase escondido. eu dei pulos de alegria tropecei na sala bati o dedinho no pé da cama dei um grito e pensei. com meu novo rainha isso nunca mais vai acontecer. me vinguei com esse futuro botei a camiseta do avesso minha mãe disse põe essa roupa direito e assim fomos.
o ônibus demorou uma vida inteira pra sair. depois outra vida e meia pra chegar no centro. aquilo fervia de gente. estava quente. as pessoas iam pisando no meu chinelo e no da minha mãe. a gente se atrapalhava um pouco no meio de tanta multidão e tínhamos que passar em outra loja antes. pagar primeiro um crediário.
nem vi as mesmas cenas que me impressionavam sempre. o sanfoneiro cego. o outro com elefantíase. a mãe banguela com lenço na cabeça e cada vez um bebezinho num braço com o outro estendo a mão em concha pelo amor de deus moço. pelo amor de deus moça.
e quando chegamos na loja de calçados aquilo parecia um templo. quatro andares com tudo de vidro. as vitrines brilhando os tênis todos reluzentes e os funcionários perfumados com cabelos penteados parecendo muito felizes com as camisas por dentro da calças. posso ajudar. pode sim a gente quer ver um rainha system pro meu filho. claro senhora e a gente sentou numa cadeira fofa e o cara subiu as escadas com uma classe impressionante e voltou lá de cima empilhando várias caixas de uma vez e foi demais. rapidinho estava ajoelhado aos nossos pés abrindo as caixas todas retirando seus papéis de seda amassados de dentro dos rainhas nos mostrando um por um. eram vários de três numerações distintas e cores e modelos e também preços variados.
provei até achar o número. depois provei até achar o modelo. mas precisava ser o mais barato e eu disse tudo bem mãe é lindo. aí provei até achar as cores foi difícil. mas quando deu botei o outro e fui andar pela loja. tinha espelhos pros pés por todos os lados. tanto brilho luzia de quase doer os olhos. as pessoas parecem que olhavam pra mim. os funcionários sorriam e quase queriam me aplaudir. minha mãe tinha um misto de satisfação e medo numa lágrima que não caía presa no olho esquerdo. aquele chão era tão branquíssimo e liso que eu parecia estar além deste mundo. no paraíso ou coisa assim. tudo era cheiroso. principalmente o meu rainha.
vamos pôr ele na caixa ensacar e é só retirar ali depois do pagamento muito obrigado senhora. posso parcelar abrir um crediário. com os documentos certos pode sim. obrigada. eu fiquei ouvindo aquilo tudo pensando que não queria devolver mais meu rainha pra caixa. moço. e eu não posso ir com ele no pé. ao fim de alguma conversa sobre febre e doença ele acabou compreendendo e eu pude. mamãe pegou uma fila entregou os documentos preencheram toda aquela papelada carimbo assina. depois tirou um tanto de notas bem dobradas de sua bolsinha para a entrada. pegou um cupom a sacola da loja com a caixa vazia. e começamos a sair juntos em direção à rua.
conforme fomos nos aproximando o barulho da rua me invadiu a mente. burburinhos de passantes sons de carros e buzinas arredores. microfones com locuções de promoção música eletrônica de fachada. o bafo de fora começava a anular os últimos suspiros do ar condicionado de dentro. avistei o chão da rua de pedestres. todo meio cinzento encardido com cocôs de cães de rua chicletes cuspidos e moles ao sol do meio-dia. pessoas se esbarrando sem querer entre discretas rasteiras pisadas nos pés. escarradas verde amarelas bitucas de cigarro um sorvete que caiu da mão daquela velha. tudo aquilo foi me causando um pânico e eu travei.
travei na saída da loja com meu rainha system ainda impecável e quando fiz o breque total ouviu-se aquele barulhinho típico dos tênis novos num chão lisinho. mamãe se voltou pra mim uns passos à frente pisando já na rua. disse e então menino como é. vamos ou não vamos para a casa. é hora do almoço e seu irmão está com a sheila já faz tempo.
não podia submeter meu rainha àquele mundo. era tudo muito cruel pra ele. aquele chão as ruas o jeito das coisas. e das pessoas. ele perderia seu cheiro sua cor intacta perfeita gastaria sua sola. talvez já pegasse um chiclete de cara. um cocô daqueles que envolvem todo o pé enquanto afunda e chegam mesmo a sujar as laterais do tênis. poderia ralar o seu tecido lindo nalgum pisão mais forte um meio fio mais áspero. numa manobra qualquer dessas muitas que temos que fazer no meio do povaréu.
pensei no asfalto da rua de casa. nos ladrões de tênis da cidade. nos rituais de batismo que se faz e de como ficou o rainha do fabrício depois deles. e das aulas de educação física recreios. pensei em tudo isso. e na vanessa não me querendo mais quando meu tênis se estragasse. meus empregos no futebol profissional e nas novelas. toda a fortuna e conforto que daria a minha mãe. minha rainha.
meu rainha. via tudo aquilo. e o medo me impedia de seguir. simplesmente me impedia.
mãe. você pode me levar no colo.
Rafa Carvalho é um poeta brasileiro que carrega em seu corpo raízes do mundo inteiro e a poesia como raiz de todas as artes e gêneros literários, como da vida em si. Soma 16 anos de carreira, com trabalhos em arte e educação por mais de 20 países. Integrou o coletivo Poetas del 15 Mayo na Espanha em 2011, tendo parte em sua antologia homônima. É autor de auto-mar (poesia; Editora Patuá) lançado no Brasil e em Angola; e contas de mar (contos; Editora Pontes). Finalista do Prêmio Sesc de Literatura, tem forte atuação social em sua comunidade periférica de origem e por onde esteja. Curador do projeto “papos de versos”, idealizador do Sarau da Dalva, é um forte representante do fundamento antropofágico e cada vez mais considerado por sua capacidade de criar pontes, entre o aparente incompatível.