Brasil: (im)possíveis diálogos #22

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

520, um monólogo

Por Fred Di Giacomo

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Vitor Rocha

— Bróder, posso falar uma coisa entre nós?

— Claro!

— Esse lance de copiar os Estados Unidos em tudo…

— Ah, a gente é muito colonizado, né?

— Tipo, não existe mais racismo no Brasil, tá ligado?

— Em que Brasil?

— No nosso Brasil, pô! Aqui nunca foi que nem nos Estados Unidos, que nem na Alemanha, essas porras de forno e câmara de gás, saca? Não foi um troço oficial.

— Sei lá, mano, sempre convivi com racismo.

— Mas você é branco, cara.

— Por isso mesmo. Sempre convivi com racistas, ué.

— Ih, lá vem.

— Lembra quando meu irmão ficou com uma menina negra na festa de RP?

— Não lembro, não. Ficou, é?

— Ficou, ficou.

— Seu irmão também era pegador pra caramba, hein?

— Eu lembro que vocês disseram que ela parecia o Kanu.

— Kanu?

— Aquele jogador da Nigéria.

— Falamos?

— Sim, pô, não lembra?

— Ha, ha, ha, nóis é foda… Devia ser baranga também, né? Ah, fala sério, não pode falar quando mulher é feia agora? Se fosse baranga branca a gente zoava também.

— Mas não foi só com essa. Quase todas mulheres negras do nosso estágio tinham apelidos secretos: Predador, Macunaíma, Aquático…

— Pô, não é bem assim. Olha só, cê já trepou com uma neguinha? Aposto que não. Todo esse discurso e… Bom, eu trepei e gostei, viu?

— Olha, aí, tô falando…

— Mas tô dizendo que gostei da mina, porra!

— Posso dar um exemplo?

— Manda.

— Trabalhei como jornalista dez anos antes de ganhar o Jabuti, né?

— Claro, puta orgulho, passou pelas maiores revistas do Brasil. Vários prêmios e tal. Avanhandavense mais famoso do país!

— Pois é, e não podia ter negro na capa das revistas.

— Como assim?

— Falavam que não vendia, que o público não se identificava com o negro.

— Ah, duvido, isso é teoria da conspiração, vai.

— Aconteceu comigo, cara, tô falando. Comigo e com meus colegas.

— Pô, mas isso não é racismo, é a lei do mercado. Você mesmo disse que negro na capa não vende revista. O dono vai fazer o quê? Caridade? É a mesma coisa que você obrigar as pessoas a comprarem um jiló pra cada três tomates. Ninguém gosta de jiló.

— Mas, mano, pensa: se você escolhe quem pode ou não aparecer em capa de revista, você cria uma realidade paralela, onde o negro não existe fora das notícias policiais.

— Pode ser, sei lá, não manjo dessas coisas cabeça.

— Cara, e não é só uma questão de capa de revista. Fui produzir um ensaio com várias modelos pra um site; ensaio sensual, saca?

— Ha, ha, ha, cê é safadão, igualzinho seu irmão.

— Então, o fotógrafo selecionou as seis modelos mais gatas da agência. Aí, me ligou e perguntou “Tem uma das meninas aqui que é morena. Tem problema?” E eu falei “Como assim?” E ele: “Não me leve a mal, eu não sou racista, mas é que tive muito problema aí com modelo negra, sabe? O pessoal não gosta.”

— E você?

— Mandei fotografar, claro. Eu não ia conseguir ficar no trabalho se tivesse cortado alguém só por causa da cor.

— Porra, cara, do jeito que você tá falando parece que é mais difícil um negro sair na capa de uma revista do que entrar numa universidade.

— Se bem que nossa universidade era pública, mas tinha no máximo o quê? Dois negros pra cada 40 alunos?

— Mas era faculdade em São Paulo, né? Um estado mais branco, questão de porcentagem.

— 40% da população é negra em São Paulo. 40%, cara. Dois alunos por sala dá só 5%.

— Ah, mano, sei lá, não curto discutir política, manja? Tudo isso que você falou é verdade mesmo? Por que você nunca escreveu um conto sobre isso antes?

— Pô, mas vou escrever um conto sobre essas fitas? Depois nunca mais arrumo emprego.

— Sei lá, pelo menos aprovaram a redução da maioridade penal, né?

— É…

— Ih, que foi? Ah, para, isso não tem nada a ver com direita e esquerda. Fala a verdade, não é bom?

— Pô, não consigo entender como a redução da maioridade penal vai resolver o problema da violência no Brasil.

— Para, cara, quero ver quando alguém da sua família for estuprado por um traficante menor de idade. Você vai chorar pra quem? Pro Batman? Pro Boulos?

— Será que o Thor vai rodar agora?

— Ah, ele atropelou um tiozinho, não foi bem “matar matar”, né?

— Atropelou e matou, ué.

— Mas ele não tinha a intenção, coitado, tomou o maior susto. Tá até hoje a base de Rivotril.

— Mas pelo novo estatuto ele deveria ser preso. Ainda mais dirigindo em alta velocidade e bêbado.

— Tá louco, cara, imagina o Thor na cadeia? Aquilo é um inferno, não é pra gente que nem nós. Pensa, cara, ele só cometeu um erro. Imagina estragar a vida dele bem agora que ele vai fazer intercâmbio no Canadá? Thor é irmão da Poli, bróder, nossa amiga. Para!

— Ué, mas você não é a favor da redução?

— Eu sou, mas pra bandido—bandido saca? Aqueles filhas da puta que ficam estuprando, matando, com cara de ruim. O Thor tinha cara de gente normal.

— Tipo o filho do Luciano Castro.

—Pô, que que tem ele? O Castro é um dos empresários que mais acredita nesse país. Sabe o tanto de gente que ele emprega aqui na região? Os caras levam o Brasil nas costas, bróder.

— Mas você lembra que o filho dele chapou uma menina e forçou ela depois?

— Ah, para, cara, ele tinha 14 anos, nem sabia o que estava fazendo. E não foi bem estupro-estupro, né?

— Sério?

— Pô, estupro-estupro é quando entra um neguinho na sua casa e espanca sua mulher e come ela na marra, entende? Hoje em dia, também, tudo é estupro. Daqui a pouco até eu vou virar estuprador.

— Como assim?

— Ah, cara, isso aí é meio que histeria feminista. Estuprador-estuprador não é gente que nem eu e você. Esses Champinha aí da vida tem que castrar, mesmo, jogar na cadeia pra virar mulherzinha.

— Cara, você lembra do Breno que morava em Glicério?

— Putz, meio que lembro.

— Lembra de uma história em que ele ficava com uma mina que era a fim dele, mas ele não queria mais nada e a mina não desgrudava?

— Pode crê, a mina era mó chiclete,né? Toda romântica e o Brenão só querendo putaria.

— Aí, um dia ele falou que só ficava com ela, se ela des…

— Ha, ha ,ha, o Brenão era safo. Aquele era malandro.

— Pois é, a mina não queria, ele pressionou, ela acabou topando e, na hora h, machucou, sangrou, aí ele mandou ela ir embora, xingando de porca, nojenta…

— Foi meio pesado.

— Meio?!

— Ah, bróder, eu entendi seu ponto, mas é que o Brenão era um cara bem retardado. A gente não é assim, vai.

— Claro que é, velho, se liga, toda pornografia que a gente vê, é tudo meio estupro.

— Bróder, fale por você: eu tô namorando minha novinha tranquilo. Nem punheta tô batendo. Quando quero sexo é só jogar uma ideia.

— Mas mesmo namorando, quantas vezes você não forçou a barra?

— Ah, mano, mas é namoro, né? Meio que faz parte do combinado. Se for assim, então, até eu já fui estuprador?

Conversavam há horas ou há dias, nunca saberemos. Conversavam há 520 anos e estariam conversando, ainda hoje, sem perceber o mar vermelho que se acumulava sob seus pés ameaçando afogá-los. O santo tentava com amor convencer o anjo caído de seus pecados. Pelo diálogo, pelo sermão, pelo exemplo; um dia esses dois irmãos haveriam de se reconciliar. Tão distantes, mas tão próximos.

Debatiam ou apenas olhavam-se no espelho? A voz que vinha da direita, máscula e grave, não se diferia plenamente da voz que convergia pela esquerda.

Quando a sombra se aproximou da dupla, eles não a perceberam. Aqualtune ressurgiu, altiva, de lança prata na mão e varou os pálidos siameses. Ao que era mal espetou pelas costas, sem concessões. O que se absteve, que foi cúmplice, foi atravessado no peito, mas teve a chance de vislumbrá-la. Morreu com um alívio no rosto.

Sobre a montanha de músculos daqueles homens sangrados, ergueu-se, enfim, alguma justiça.

Fred Di Giacomo é escritor e jornalista; caipira punk nascido e criado em Penápolis, sertão paulista. Seu romance de estreia Desamparo (Reformatório, 2018) foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Quando dava aulas de jornalismo para jovens de periferia na Énois, coordenou e editou o Prato Firmeza: guia gastronômico das quebradas de SP, finalista do Prêmio Jabuti. Toca contrabaixo e rabisca versos na Bedibê e escreve na coluna Arte fora dos centros do portal UOL.