Brasil: (im)possíveis diálogos #21

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

Cripta-Domingos

Por Kátia Bandeira de Mello Gerlach

printemps_nao_ficcao
Vitor Rocha

Hoje é domingo e amanhã, que é hoje, é domingo. Neste movimento em que os anos perdem os seis sentidos, como se se livrassem de dedos, uma semana de domingos se somará a semanas dominicais, e juntando as peças miúdas, o calendário será preenchido por domingos. Em inglês ou alemão, Sunday oder Sonntag, dia solar musculoso e maiúsculo. Bom domingo, repete o vizinho ou o pensamento. As vozes se confundem: sou eu o vizinho, ou o pensamento começou a inventar vizinhos, ou os vizinhos inventam pensamentos que flutuam no ar como jatos nocivos de aerossol.

Um mar de nuvens paira sobre as montanhas desejoso de aterrissar sobre a cabeça abalada por pensamentos e vizinhos e o que se repete é a saudação de um bom domingo, gratidão pelo domingo que anoitece e amanhece sem parar. O céu preserva-se intacto, os jardins resignaram-se a semear domingos, e nunca será tarde para reparar nas árvores e plantas transformadas em seres dominicais, arrebentando o ar numa sequência de sermão eucarístico. Os acontecimentos insistem na fixação dominical, um entra e sai do altar; quem comunga o pãozinho matinal absorve a inviabilidade de uma segunda-feira ou o retorno de uma semana litúrgica completa, munida de dias densos como o caldo de lembranças acumuladas no lobo pré-frontal e no hipocampo do cérebro.

Um ou mais vírus voam pelas asas de pequenos morcegos aventureiros, replicando o processo da polinização, dispensando as abelhas ameaçadas de extinção. Conhecedores profundos das noites e das estrelas e, antes relegados a coadjuvantes em filmes de terror, os morcegos acabaram por aceitar o papel de protagonistas. Stephen King não se surpreenderia se o morcego número um, o principal propagador de uma epidemia em 2020, ganhasse a estatueta do Oscar galardoada ao “Parasita” de 2019.

Corona, o vírus de sequência decodificada em laboratório, é populista e pode alcançar a dimensão de um Alexandre, o Grande. A história contemporânea mostra a atração do eleitor comum (este ser cheio de incógnitas raramente desvendadas por pesquisas e gráficos) por líderes com personalidades, no mínimo, desagradáveis como resfriados, ou nos quadros extremos, graves infecções pulmonares. Líderes explosivos, sem papas nas línguas, sacodem a poltrona do eleitor comum, distraem-no das séries televisivas. O par incurável do populismo com o narcisismo nutre pragas que permeiam a humanidade, inclusive a vindoura praga dos livros sobre a praga. Quando o império do Corona sucumbir, incendeiem-se estas páginas e deixem O Decamerão de Boccaccio reinar supremo em seu altar. Há coisas do passado nas quais não se mexe, é brincar com o fogo.

Sobre livros: para os leitores que encomendam exemplares pelo correio real, pois que saibam que os livros, como os humanos, precisam ser desinfectados e depositados num canto de quarentena. Debate-se como melhor expurgar livros já que, como a medicação contra malária aplicada de forma errada no corpo doente, os livros podem ser destruídos e virarem pó no processo.

Sobre o pó: enquanto os caixões são fumigados por um soldado na igreja de San Giuseppe em Seriate na Itália, o combate se estende pós-morte na China, onde os cadáveres saem dos necrotérios hospitalares para crematórios e nunca se vendeu tantas urnas. À guisa dos indivíduos pulverizados em fornos, as urnas são iguais, produzidas em massa. As orquestras sinfônicas tocam, cada músico com seu instrumento num quadrado virtual. YoYoMa exibiu um concerto de cello solo.

Sobre o fogo: escritores do ramo de Franz Kafka, um profeta, devem considerar queimar páginas preenchidas pela sépia, ou cepa, da pandemia. Não se recomenda perpetuar no papel isto que se vê, é preferível a folha em branco, a cegueira intermitente de Saramago, a gota serena da qual se cria cidades e habitantes invisíveis, como se saísse de um estado de comatose. Remete-se ao filme “Goodbye, Lenin” passado na Berlim de 1989, quando a mãe despende o tempo da queda do muro sedada e desperta numa cidade inexistente simulada pelo filho a fim de evitar o choque da transformação do leste em oeste. As chamas que desintegram os corpos mutilados pelo Corona podem levar consigo os livros provocadores de pânico e terror aos vivos. Muitos estão prestes a morrer de medo ou a testemunhar uma catarse universal. Uns temem os domingos, outros temem as sombras dos domingos. Esta vontade de fogo advém da pressa do indivíduo em retornar ao pó e interromper a visão do sofrimento estampado nas manchetes de jornais domingueiros preguiçosos.

De modo inusitado, o Corona trouxe os hospitais e comunidades marginalizadas para as primeiras páginas das edições parrudas de domingo. Os moradores de rua, vetores de transmissão como os morcegos, começaram a incomodar e foram armazenados em ónibus inoperantes nos depósitos periféricos. Quando antes se ignorava a falta de saneamento e recursos básicos da maioria da população, ou as filas de quarteirões ao redor de hospitais públicos, as eternas macas nos corredores da morte, os doentes sem acesso a um lençol para cobrir o corpo, o advento deste vírus contagioso estremeceu as centrais de emergência. No metrô de Nova York, em abril, incendiários acendiam centelhas nos trilhos. Suspeita-se que fossem escritores obcecados livrando-se de seus livros e enaltecendo a coragem de Anna Karenina ao atirar-se em frente ao trem de Chirico e encerrar o seu percurso como personagem de Tolstói. No New York Presbyterian Hospital, um paciente com câncer suicidou-se ao receber o diagnóstico do Corona em plena invasão das suas vísceras, enforcou-se com os lençóis que faltam aos doentes nos hospitais públicos brasileiros.

Um bravo nova-iorquino atirou-se da janela de um edifício downtown e no Queens, em Throggs Neck, um anónimo pulou da ponte. O corpo permaneceu estirado na margem do rio, os que caminhavam naquela manhã esqueceram do distanciamento social imposto e se aproximaram do defunto. Queriam tocá-lo, sentir a sua humanidade esfriada pela água e pela morte. Camus não apenas escreveu sobre A Peste, tratou dos suicídios em seus escritos. A médica chefe do ambulatório se envenenou por não suportar a impotência de Sísifo diante da força destruidora do Corona. Antes da mais recente pandemia viral, discutia-se em certos círculos a pandemia de suicídios entre os jovens universitários americanos, os menos vulneráveis à pandemia do Corona; haveria o Corona retardado os suicídios juvenis.

Para contrastar com a brancura de uma cidade de fábula nórdica, feita de neve e tábuas de madeira, os pássaros que proliferam são os corvos contemplados por Poe. Os corvos distinguem-se dos urubus pelo seu porte elegante, o seu bico pontiagudo, olhos acesos. Nas praias dos trópicos, nos balneários, observa-se os urubus que devoram os restos dos peixes deixados por pescadores. Naquelas praias, o pescador arranca as partes que lhe interessam do peixe e joga os restos na areia e isso faz parte da abundância que a natureza brasileira oferece, sobra para alimentar os urubus. Em lugares de escassez, como no interior do sertão nordestino, uma cabeça de peixe alimenta uma família inteira com um bom pirão de farinha de mandioca, a única farinha que não se consegue comprar no supermercado da cidade imaginária. Na prateleira do supermercado, encontra-se uma fileira de farinhas: de trigo, de milho, de amêndoas, de nozes, de avelãs, de fécula de batata etc. etc. mas a farinha de mandioca não chega à profundeza do hemisfério norte. Um senhor de cabelo grisalho que arruma as alfaces de manhã calça luvas e veste máscara. O Corona marcha, lança-se nas caravelas de Sagres e busca-se um Camões para elaborar versos dignificando os dois astronautas da tripulação da SpaceX. Após um lançamento interrompido pelas névoas, estes homens completaram uma semana de dias úteis na estação espacial internacional, onde esquecem que, na terra, ninguém escapa do magnetismo dos domingos.

Felizardos os que possuem janelas abertas para as ruas ou varandas no ano lunar do Rato. Das janelas, quando as luzes da cidade se apagam, a estação espacial que orbita o planeta há vinte e dois anos, pode ser avistada como uma estrela. Uma estrela que brilha de horizonte em horizonte. Uma estrela intrusa, acesa aos olhos do cosmos pela vontade intelectual humana. Das varandas, italianos cantam réquiens, franceses rezam com Piaf e Aznavour e brasileiros embalam as almas com samba, música sertaneja, forró, frevo, o ritmo que for, para além dos cultos e sermões dominicais. Há quem se exaspere com a bateria de sons e vislumbre confinar-se num silêncio inteiro, quase ou totalmente divino. Ana Branco fotografa aqueles que veem a vida passar debruçados sobre os umbrais das janelas e varandas. Nara Leão e a banda partiram precocemente.

Sobre “A Festa no Céu”: corvos e urubus não funcionam como pombos correio ou morcegos transmissores, não atravessam a estratosfera, sequer circundam o mundo, e jogam poeira nos olhos como elementos do vento. Desistiu-se de treinar pombos para carregarem mensagens de amor nestes tempos absolutamente antirromânticos. Os pombos, cujos filhotes nunca são vistos até que se confundam com suas mimeses adultas, espalham-se em matizes cinzentas e desenvolvem manchas coloridas nos pescoços conforme envelhecem e escurecem os seus bicos como bocas humanas violetas. O segredo dos borrachos se guarda nos ninhos em penhascos e cavernas, ou lugares que se assemelhem às rochas que os alcunham de “pombos das rochas”. Há uma sabedoria nestes esconderijos armados pelos pais para que os filhotes se fortaleçam, efeito comparável ao do isolamento humano exigido para achatar curvas epidemiológicas. Sob o comando do Corona, inverte-se a regra porque a necessidade de abrigo se faz mais prevalente entre os progenitores, os borrachos são superiormente resistentes. Ademais, a despreocupação bíblica com a fome é marcante entre ovíparos. Estes seres que não vivem de sermões dominicais, existem numa definição de fé diferente da humana, confiam em domingos luscos.

Desconhece-se se acaso as aves sonham ou se a ciência que as acusa de descendentes de dinossauros é correta. Apenas um filósofo como Swedenborg seria capaz de comprovar a ligação entre os anjos, as almas e os pássaros errantes. Assistido pelas lentes do binóculo, o escritor americano Jonathan Franzen corria mundo para avistar aves raras até que os aviões pararam de voar. Na prática da ioga, o corpo é a casa, e a casa é o corpo. As cavidades do coração se expandem com amor e compaixão. O menino de doze anos chega ao parque, ouve os sons ao redor e magicamente localiza sobre a copa da árvore corujas e águias e, num dos galhos remotos, aponta para o casal de cardeais vermelhos. Ele abre mão do binóculo, basta-lhe intuição.

Antecipando uma vacina contra a Terceira Guerra Mundial, centenas de cientistas trabalham de domingo a domingo à caça de anticorpos, usam plasmas de antigos enfermos. Os cientistas colaboraram no desfecho da segunda guerra mundial inventivamente. Camus construiu “A Peste” como a metáfora sobre a doença do fascismo, que antecede o capitalismo de estado vigente. O carismático Corona surge como furúnculos na pele de infectados e reivindica o realinhamento da participação do estado na economia, os mais árduos defensores capitalistas, as corporações, estendem o pires aos governos para obterem os frutos do suor dos operários da modernidade. As máquinas que imprimem dinheiro de papel equivalem a respiradores hospitalares. Eis que os morcegos de domingo giram em torno de cripta-moedas, cripta-ideologias e balões de oxigênio, sendo que o vitorioso Corona vive anaeróbico por horas insondáveis, enquanto os humanos sufocam em menos de um minuto com um joelho alheio fincado no peito.

Kátia Bandeira de Mello Gerlach, natural do Rio de Janeiro, é escritora-poeta-artista visual radicada em Nova York desde 1998. Seu trabalho é fortemente marcado pelo movimento surrealista e pela patafísica. É curadora da Revista Philos. Os seus livros, dentre eles Colisões Bestiais (Particula)res, são publicados pela Confraria do Vento. Foi homenageada pela Flipoços 2019 como escritora sem fronteiras, pelo seu trabalho de divulgação internacional da literatura brasileira e compõe o elenco de escritores do Clube de Leitura do Instituto Moreira Salles em Poços de Caldas, organizado pelo professor Sérgio Montero Aguiar.