O cobrador ajudou Madalena a descer do ônibus. Carrega três sacolas grandes, de nylon trançado, pesadas com marmitas, produtos de higiene pessoal, roupas: torta de frango, arroz doce, feijão com beterraba, escovas de dentes, camisas brancas, conjuntos de moletom, sabonetes, cigarro, papel higiênico. A fila já estava grande. Tentou encontrar algum rosto conhecido mas ninguém lhe despertou lembrança, estavam todos desfocados, o sol era forte e ela precisava comprar óculos novos. O que usava agora fora dado pela dona Marta, antiga patroa, que disse não precisar mais dele, havia comprado novos óculos quando veio de Paris. Madalena não sabia quantos graus tinham, ajudavam a ler suas prescrições médicas, a bíblia gasta e tracejada de marcações. Da sua casa no Capão Redondo até a penitenciária localizada em Parelheiros foram quase três horas de viagem. Joarez, seu filho, pedia para que ela usasse o transporte oferecido pelos Irmãos, era um dos benefícios garantidos pelo pagamento dos seiscentos reais mensais. Ela não queria se envolver com os Irmãos, fazia o pagamento mensal por obrigação, a segurança do filho dependia disso. Carlinhos, filho de uma vizinha, passou meses no hospital, com fraturas nas pernas e mãos, depois de atrasar sua mensalidade.
O último pagamento estava atrasado. A tendinite tinha tirado-a do trabalho por quase duas semanas, dona Cláudia não esperou, disse que não precisava mais do seu serviço. Seus ombros latejavam o dia inteiro, limpar janelas era um sofrimento imenso, agulhas sendo introduzidas pela extensão do seu braço. As mãos fraquejavam, quebrou dois acrílicos de dona Marta na última limpeza. Por sorte a patroa não percebia essas coisas. Fez uma trouxa com os cacos, guardou na bolsa e jogou na caçamba próxima ao elevador de serviço. Pediu dinheiro para Jardel, o outro filho, ele recusou. Bandido bom é bandido morto, uma aberração, preferia ele morto, foi sua resposta. Pediu ajuda para o pastor da congregação que prometeu ajudá-la mas não havia conseguido o dinheiro ainda. O jeito foi conversar com o Irmão do bairro, explicar sua situação e pedir por mais duas semanas para pagar o valor restante.
A fila começou a se mover, eram nove da manhã. Nas guaritas agentes de segurança empunhando fuzis. Na frente de Madalena duas jovens conversavam. Uma trazia uma menina pela mão, a outra acariciava o ventre que já despontava. Não sei o que vou faze minina, o Irmão lá da vila veio em casa antesdeontem, falando que eu divia traze os negocio, falo que eu to gravida, ninguém vai mi revista, garantiu pra mim. Vô fazer o que, Igor caiu com os produto, vamo ter que paga de um jeito ou di outro. As mulheres pararam de conversar quando gritos começaram à frente, já próximo ao portão. Vagabunda, vou ti matar, sua puta. Deixa meu homi em paz, se não eu te mato. Clodoaldo é meu marido vagabunda. O que cê tá fazendo aqui? Vez ou outra mulheres discutiam, brigavam, a polícia intervinha, mandava ambas para o final da fila. Madalena não entendia como moças jovens acabavam na fila de visitas de uma detenção. Uma mãe não abandona suas crias, mesmo quando crescem e embarcam na delinquência.
Chega sua vez. Apresenta o RG, Madalena Conceição Silva, dá o nome do filho, Juarez Conceição Silva. Sobrenome ambos só tinham da mãe. Pediu ajuda para Gilberto, um dos guardas, para erguer suas sacolas para a inspeção. Já era conhecida deles, sempre deixava uma marmita com bolinhos de chuva que recolhia na saída. O filho não sabia. Pensava que poderia render alguma segurança extra para Juarez, talvez uma cela melhor. As sacolas foram liberadas, foi para a fila da revista íntima. As mulheres se despiam, encostavam na parede infiltrada por vazamentos, abriam braços e pernas, esperavam por ordens. Angela, chefe da revista pessoal, vinha com o espelho, mandava que se agachassem duas, três vezes, rapidamente. Depois que tapassem nariz e ouvidos, que expirassem de cócoras, posicionando um espelho sob suas vaginas.
O presídio era formado por dois pavilhões retangulares de três andares cada. Juarez ficava no primeiro prédio, à esquerda. Madalena entrou no pátio central, observou os presos, não encontrou o filho. Foi até o banheiro, retornou sem rumo em direção aos bancos disposto para as famílias, quando ouviu seu nome sendo chamado. Era o filho. Aproximou-se. Juarez, meu filho. Que saudade eu tava de você. O filho vestia camisa branca, calça bege, lábios e unhas pintadas com vermelho. Mãe, já disse pra senhora não me chamar de Juarez. Meu nome é Joana, entendeu, Joana. Como que eu posso te chamar de Joana se criei você como Juarez? Você é um homem, meu filho, isso é coisa de Satanás, tudo isso, sua vida de crime e essa confusão. Mãe, vamo esquecer isso, tá? Me chama como a senhora quiser. Eu tava com saudade da senhora. Queria perguntar, a senhora pagou a mensalidade? Não, meu filho, não tive como, mas eu falei com os Irmão, mandaram eu te entregar isso daqui, a dívida tá paga. Madalena retirou da sacola quatro trouxas fartas e brancas, entregou para o filho. Lembravam paçocas.
Rafael Mendes é tradutor e poeta. Residiu em Franco da Rocha, Dublin e atualmente mora em Barcelona. Publicou em 2018 Ensaio sobre o belos e o caos pela Editora Urutau. Tem participação nas seguintes antologias: Poetry in the Time of Coronavirus (EUA, 2020, no prelo), Parem as máquinas (Off Flip, 2020, Brasil, no prelo), Writing Home: The New Irish Poets (Dedalus Press, 2019, Irlanda), 32kg: Uma antologia Brasil-Irlanda (Urutau, Europa, 2017). Seus poemas já foram publicados nas revistas Ruído Manifesto, Gazeta da Poesia Inédita, Revista Gueto, Mallarmargens, Vício Velho, Subversa, FLARE magazine, The Irish Times, entre outras. Edita o blog de tradução Poetry Bilingue.