Há o homem à minha frente. Cabeça de ovo, corpo-lagarto.
Petrifico-me.
Quero ser a pousada do camaleão.
Assusto-me diante do ovalado de sua cabeça.
Não sei quê, deixou-me assim: assustada!
A partir do momento a forma pode parecer escorregadia. É verdade: assim se me parece.
Tento segurar-me, pois o céu leva-me ao escorregadio.
O céu, grande céu, certamente o mais importante e movimentado do espaço. Sua semelhança refletida e não aparente para nós: Terra. É este o largo e grandioso céu que me leva à vontade de explicar, o tudo, diante da possibilidade do mágico?
Ao tempo que digo achar a resposta, se põe à minha frente o homem cabeça-ovalada. A saída é a observação, não do mágico, mas do homem e de sua ovoide. Após alguns instantes, sinto que nada me serve, se não souber o que há dentro do ovo. Clara-gema ou sangue? Uma ave? Se assim fosse, quem aqueceria e protegeria aquela nave para vigorar uma vida? Seriam as mãos-homem sobre a cabeça? Será minha cabeça também ovo? Haverá dentro deste ovo um espaçoco, como céu em dias de angústia?
Preciso quebrar o ovo. Única certeza que me fica. Como quebrar essa barreira?
Nesse momento, satisfações canibalescas me envolvem na possibilidade de ser alimento o dentrodovo. Torno-me homicida nesse jogo e suicida de certa forma. Com certeza: é o machado e, acima de tudo, em câmera lenta.
O machado alcança a fina casca, mas… sinto-me estranha e paro o movimento, que rela o ovo. A casca se desfaz. É um novo.
Breve explicação sobre este conto, escrito entre 15 e 17 anos, e aprimorado na disciplina de conto, ministrada por Bruno Zeni em 2014, na pós em formação de escritor no ISE Vera Cruz:
Meu encantamento juvenil pelas obras do pintor espanhol Salvador Dalí serviu de nave surrealista a dar voz a questionamentos internos e filosóficos. E a observação desta obra é a matriz desta inspeção sobre a criação, de onde viemos, quem somos, aonde vamos: Metamorfosis de Narciso. 1937. Óleo sobre tela. 73,5 x 92 cm. Tate Gallery, Londres.
Mais tarde na vida, aos 33 anos, tive a sorte de visitar em lua-de-mel a casa em que ele vivia com Gala, sua eterna musa, em Cadaqués, pequena e bela cidade costeira, assim como o Museu-Teatro, na cidade de Figueras.
Na casa branca de Cadaqués, uma enorme escultura de ovo salienta que esse símbolo sem dúvida ocupa um lugar entre os “comestíveis” pictóricos dalinianos.
As obras de Dalí, “um consórcio entre exatidão e delírio”, sofreram grande contágio do literário com o pictórico, a exemplo do poema San Sebastián o La Santa Objetividad, que Federico García Lorca dedicou ao amigo em julho de 1927, publicado na revista Gallo, dirigida pelo próprio Lorca, em Granada.
“À maneira de Marcel Proust, que via na operação de escrever a ação de traduzir o livro misterioso, todo escrito com caracteres hieroglíficos no interior da alma, o artista surrealista se esforçará em beber no copo de um idioma sensível — espacial e cromático — os misteriosos sinais que brotam, espontaneamente, das profundezas do espírito. Assim, pois, segundo o surrealismo, ficará a pintura incumbida, de uma maneira toda especial, da façanha de revelar à consciência as potencialidades do espírito, e isso só poderá ser realizado ‘transubstanciando-se’ em poesia; fazendo-se ela mesma, poesia.” Ignácio Gómez de Liaño, em Dalí. Ao Livro Técnico S/A, 1982, 1ª. edição.
São Paulo, maio de 2020.
Ana Célia de Mendonça Goda é graduada e licenciada em Letras pela PUC-SP, 1989. Pós-graduada em Administração e Organização de Eventos pelo SENAC-SP, 1994, e pós-graduada em Formação de Escritor — núcleo ficção pelo ISE Vera Cruz, 2017. Trabalhou para diversas organizações e casas editorias, entre elas o Círculo do Livro (como revisora e editora-assistente) e a Editora Melhoramentos (como editora e gerente editorial, de 1996 a 2013). Atualmente atua como freelancer, escrevendo, editando, ensinando etc.