sem-valia, de Sílvia Schmidt

“Primeiro foi necessário civilizar o homem em relação ao próprio homem. Agora é necessário civilizar o homem em relação à natureza e aos animais.” (Victor Hugo)

Na pequena comunidade rural de águas verdes sulfurosas, os dias eram longos, estafantes e iniciavam-se com a cantoria sincrônica das centenas de machos cigarras, na tentativa de atrair as fêmeas para o acasalamento. Deixar suas cavernas, o chão por onde ficavam, ali submersas para esta ovulação e somente depois, irem a procurar seivas dos poucos grãos de café, era sem dúvida, dádiva. Refazer os ciclos, para então, retornar ao silêncio sepulcral, por entre as raízes da mata preservada e por mais treze longos anos hibernar. Pocinhos, em meio a orquestra de cigarras, grilos e explosões, sincronizado ao meio do dia a uma pedreira comercial — que era a sua sina e também admoestação. Sobreviveriam gentes e animais sob o signo da pólvora e do dinheiro? Pedras brancas transportadas e à venda em grandes cidades de cimento e asfalto sem cantos de galo sem cantos das Seriemas, mas sim buzinas, motores de carbono ao vento, sob estacionamentos abertos em zonas estafantes e trabalho quase escravo. A meta a atingir sem freio sem regras por milhões?

Submissão ao outro, cegamente e por um prato de comida. Seguiam estas pedras estes pedregulhos mesmo à revelia. E ali no mágico espaço entre pastos, verdes e alturas — a mesma pergunta. Até quando?

O caminho de uma civilização para sua subsistência tinha preço, o preço dos inocentes. E assim se inicia este conto.

Juan Carlos, dirigiu-se a passos largos e firmes para a igrejinha ecumênica a espera de Milre. Durante esse intercâmbio, a filha de Milre, Autje, começou a balançar de um caibro, um pêndulo humano, chutando bolas no meio do balanço e soltando a palha, uma parte dela caindo no cabelo de Milre, que olha para cima e diz a Autje para se comportar, ela não podia ouvir a viga rangendo, ela queria que o teto desmoronasse? Imaginava que talvez ela o quisesse. Mãe e filha em contraste na contramão das relações. Pensamentos que viam, sem antes sequer, dar-lhe um aviso.

“Se aquieta menina, ainda cai do balanço. Onde vou te levar, nem farmácia nem médico na região. Autje não a ouvia. Seguiam assim suas aflições.

Juan Carlos, mestre de curas dos antigos povos andinos, retirou de sua pequena valise, a preciosa e densa resina — o sangue de dragon — porque sabia, seria necessário. Milre por sua indicação, entra naquele que fora construído para ser um espaço espiritual, uma pequena construção em pedras e aberta ao belo horizonte. Alguns quadros de santos e anjos, ecleticamente escolhidos e há anos dispostos em estantes mais alguns livros religiosos umedecidos pelas chuvas da estação. Entra com o pé direito, silencia-se, um olho no dedo da mão direita um olho em Autje. Estende a palma ao médico, que a alcança, fazendo um círculo energético a sua volta, e assim inicia os curativos. “Un ojo de pez en el centro del dedo anular. Como eso se diera si no por exceso de confianza”, pensava Juan Carlos sobre esta mulher que vivia entre a compostagem e a terra negra no plantio diário de legumes e folhas para a comunidade. Livre para viroses e invasores. Juan Carlos um médico pé descalço. Disse-lhe não à possibilidade de ser fotografado em prática. Dizia-lhe em seu portunhol quase incompreensível: “non es assim que se comunicam los médicos sem fronteiras, e pés descalços é no silencio, sem se ocuparem de outros anseios que non a cura la medicina. Passamos sem alarde. Non es possible fotografar me Milre, somos invisibles e assim devemos ser”. Milre sem mais delongas, sublinhou-lhe apenas com um olhar complacente de gratidão. Doía-lhe aquele ponto obtuso, enfiando-se pele adentro. O sangue de dragão passado, enfaixado o dedo com leve curativo, causava-lhe alívio. Pé esquerdo contra o negativismo do mundo, um breve baixar de cabeça, palmas da mão unidas no centro do coração, deixa a capela, ao som de bujões soltos, na carroceria do transportador local, que subia o morro até a Casa Grande, mensalmente para abastecer suas casinhas somente se pedidos. Uns vinte bujões soltos a tirlintar entre uma marcha firme e outra, avistados, ainda lá embaixo, ao longe na curva do rio.

Audje, retorna à companhia de sua mãe auspiciosa, sem notar-lhe o curativo, mas sim a presença de certa ansiedade de todos para a subida do caminhão de gás. A viela entre as casas, fim de estrada, exigia do motorista cuidados, das crianças atenção e dos pais o aviso para distâncias.

Nesta manhã de início de verão, a chegada do que poderia ser a mais normal das demandas ao sítio, algo inusitado acontecera.

Milre em suas diversas imersões para uma vida tolstoiana, sem lenço sem documento sem relações maritais, não pensou jamais que entre um e outro bujão de gás encontraria na mesma carroceria, um bezerro recém-nascido, há horas apartado da mãe. As crianças à volta de sua filha Audje, alegres, notaram o bezerrinho e suas pernas enfaixadas para mantê-lo entre uma entrega e outra, ali firmes, sem chance alguma de escapar, fugir da caçamba aberta. Parecia assustado o bezerro seu semblante distante e baixo, denunciava os maus tratos.

O caminhão de gás ficou rodeado por moradores da pequena comunidade da Pedra Branca, uns por curiosidade outros por necessidade da combustão já escasseando em suas cozinhas. Sabiam do que se tratava. Mas aquela mãe mesmo que alerta de suas funções à Pachamama no entanto, fora pega de surpresa.

“Para onde vão levar o pequeno bezerro, assim sufocado por faixas?” Pergunta Milre ao motorista, deixado o volante e rodeando sua encomenda.

“Uai dona, não é meu não, eu dei foi é carona ali pro seu Antônio, pra ele levar o tal, inté outro lugar e lá nas bordas da mata do Retiro, modi sacrificar o bichinho.”

“Como assim sacrificar, o bezerro? Sacrificar por quê?” Mãe e filha a acariciarem o pelo do animal submisso, sem nome e sem destino.

“Oh dona conversa ali com o seu Antônio eu tô é passando aqui rápido, tenho muitas entregas hoje na comunidade, esta é apenas a primeira das subidas, é morro escorregadiço pela frente.”

Nem pestanejou, Milre — quando viu o senhor — foi a ele: um caboclo fétido de álcool, roupas esgarçadas pelo trabalho de sol a sol na lavoura. Empoeirado, nem mesmo o dia nascera, e as cigarras ainda cantavam, seus dedos manchados de barro, o dela de drago, das crianças de leite azedo e manteiga do pão ou achocolatados. A vida em suas nuances subliminares.

“Mãe- repetia insistentemente Audje, com atenção”.

Milre que entre um olhar obliquo sinuoso, não compreendia o que ali acontecia:

“Vamos lhe dar um nome crianças; que pensam?”

“Sim” sinalizaram com alegria as meninas.

“Coração. Pequeno Coração”.

“Isso, Pequeno Coração”. Reafirmaram as crianças ao redor, saltitantes.

Amarrado, deitada a cabeça sobre as mãos destas, ainda a perscrutarem, naquele breve tempo entre a entrega de um botijão e seu pagamento, um destino para o animal.

“Mas seu Antônio, o que fará com o Coração, que nós não sabemos?” pergunta-lhe eufórica Milre àquele velho bugre sentado imóvel, na frente do camburão.

“Modi largar no pasto dona, tem preço não. Bebe mais leite da vaca que o seu dono pode pagar, três vezes ao dia. Manhã tarde e noite. Bebe o que o dono precisa pra vender e viver. Beberão, precisa ser sacrificado.”

“Como assim, precisa? O senhor ganhou este ser indefeso, porque ao beber o leite da mãe ele dá prejuízo… É isso Seu Antônio. Entendi?”

“Isso sim dona. Me deram e eu vou jogar ele num pasto aí quarquer, vai ser comida de urubus. Não vale nem a carne pra modi moer.”

“Mas isso não é justo, deixa ele, nós cuidaremos, deixa ele Seu Antônio, quanto o senhor quer para não sacrificar o Pequeno Coração. Vamos agora, procurar alguém que cuide dele.”

Entre um afeto, um olhar de correspondências, crianças que mal compreendiam e já se apegavam ao bezerro, o movimento dos moradores e os acertos de um leilão inconsequente- Milre tomava as atitudes na tentativa de livrar o Pequeno de sua morte anunciada. Pensou que se o adotasse, e isso como uma moradora em passagem não o poderia assumir, sem antes obter permissão dos proprietários do sítio, lembrava também que suas economias mensais não alimentavam sequer as duas, mulher e menina, com generosos litros de leites diários, três vezes ao dia. Pôs na ponta do lápis a mais valia. E esta não lhe cabia. Pensou que, entre os moradores, poderiam cotizar os valores do leite ao bezerro. Chamou assim, em reunião, os mais próximos um e outro a caminho de seus afazeres. Horta, compostagem, marcenaria. Galinheiro. Cozinha.

Não eram sustentáveis, mas procuravam autonomia. Embora compreendessem, e achassem o embrulho um belo garrote, um bom churrasco para o domingo, simpatizaram apenas com o propósito e intenção.

“Esperem”, pediu Márcio o engenheiro florestal — em estudos avançados — por alguns dias em hospedagem na casa de acolhimento aberta e para todos. Vou ver se o Francisco, que produz queijo, pode ficar com o pequeno, aguardem, já volto. Entre um dígito e outro de seu aparelho e a chegada do motorista, ali e mais impaciente.

* * *

“Por favor esperem, pedimos, não podemos deixar isto acontecer. Algo faremos.” Repetia Milre.

“Tenho tempo não dona.” Atento o motorista olhava para as notas de reais em suas mãos.

“Seu Antônio, quanto vai pedir pelo bezerro?” Milre ainda a afagar o Pequeno.

“Ah uns setenta tá pago, eu não tenho este dinheiro e não tenho o leite diário para ele. Qualqué ajuda é bão. Vai morrer memo dona?”

Entre os minutos que separavam uma ação de outra na tentativa de salvaguardar o pequeno bezerro, vinham-lhe à mente sensações diversas de desamparo, o mesmo que sentia sempre em face da vida, ela uma nômade a procura de um chão. Saberia nunca por que sua mãe Salomé a teria rejeitado, mais do que isso, pensava: “tê-la deixado partir”. Da neta jamais sobre algo. Apenas que nascera entre uma diáspora e um aviso de chegada e partida. Por consideração.

Anos de guerra em além-mar, homens brutos sem alma vagando por terras minadas a procura de alimentos e farra, festas dentro de mulheres intocadas. Salomé, a jovem da cercania, saudada com um fuzil em sua cara e uma mão sob suas vestes claras. Na cidade destroços por onde bombardeios eram frequentes e sem qualquer aviso à chegada daqueles homens de farda, era a mancha que carregavam no baixo ventre, ninguém os segurava.

Na família de pequenos agricultores do leste, Milre nascera tão formosa que seu nome a significara,no corpo, mas não na alma, queria a desmemória — por isso caminhava — entre paisagens e continentes, sabia jamais ter sido amada. Não fora exortada, porque não sabiam como o fariam, tamanha simplicidade. Aceitar o fato em silêncio como um demônio inominado a dominasse, e assim Salomé parindo-a sem afetos ou paternidade, qualquer amarra, também a deixou partir. Anos separam-nas desta que viria a ser a metáfora.

Milre encostada ao veículo ainda desligado na mais profunda revolta interna. O silêncio oceânico dos sobreviventes.

“Mãe e o Pequeno Coração, vamos ficar com ele? Vamos?” Perguntava impaciente sua Audje, sua negra íris fixa no transporte.

“Filha, pensando aqui mal tenho leite para você, vamos esperar a resposta de Marco sobre o senhor Norberto, fica tranquila filha, faremos tudo para isso”.

“Dona, preciso ir, já entreguei o bujão e tenho muitos ainda para fazer chegar a seus destinos, dia longo, deixa como está, paga uns trocados pro Antônio, né Antônio”? Este calado na cabine, levantados pés e pernas sob o console empoeirado. Displicentemente.

“É bão uai, uns setenta reais levam o bezerro, paga a lida de enfaixar e transportar. Tem valia mais não, quem sabe um churrasco de cumeeira na vila, sempre presta. Povo faz mutirão, gostam muito de carne fresca”.

“Mas Seu Antônio, ele vai ser sacrificado, jogado aos urubus como cê disse, vai virar churrasco, o senhor está de maldade, deixa o bichinho viver, eles sentem e sofrem como nós”.

* * *

“E eu faço como pra dar leite três vezes no dia pro bezerro, cê sabe que nem pra minha pinga eu tenho, estes cobres não pagam a demanda de cuidar dele. Fica então procês aqui na roça. Eu moro é na cidade”.

“É o que estamos fazendo, senhor Antônio, Marco vem ali com a resposta, está tentando no telefone achar alguém que aceite o animalzinho e dele cuide.” Milre e crianças afagavam o bezerro ali quieto, um pacote entre ferros da carroceria, um ser esmagado ao próprio corpo imóvel. As crianças a acariciarem-no, até que Marco aproxima-se em atitude.

“Milre , não atendem, é cedo ainda, Norberto não atende, e para que eu saiba se ficaria ou não com o bezerro não será agora na urgência. Preciso ir a ele, isso vai demorar.” Disse afoito Marcos.

“Oh o que faremos gente. Uma vaquinha, uns vinte reais para cada, e mais o leite diário, por mais três meses, é isso Seu Antônio?”

“É sim dona. É isso aí”. Abaixando a cabeça com polegar em riste.

“Vamos Antônio, tenho pressa, até mais garotada. Isso é comum aqui na região, a volta senhora verá corvos e abutres em círculo no céu a procura de carne despojada sem preço a senhora não se assuste não, a vida está pelo preço de morte mesm”. Entre uma lástima e o dinheiro do bujão recebido, o entregador amarra novamente o garrote com um laço redobrado, sem dó nem piedade, para que seguisse seguro a viagem de muitas curvas e cumes.

As crianças afastaram-se do caminhão que anunciava em seu alto falante a música de aviso do comércio de gás como que numa música fúnebre e em pequenos movimentos, descendo a ladeira de saída da vila para as casas vizinhas, como se ali nada acontecera; nada fizera a diferença. O tirlintar dos bujões amenizados pelo corpo do Pequeno.

No dia seguinte, um sol abrasador, seco já pela manhã, põe a pequena comunidade rural em trabalho, movimento sincrônico pela sobrevivência. Nem sequer um bom dia, nem um argumento, Milre e Audje colocam-se em marcha, a procura do mestre Colombiano para os curativos e procedimentos de um dedo infeccionando por um vírus da ordem dos papilomavírus, um invasor enraizando-se sob sua carne desprotegida e resistente. Os afazeres domésticos entre outros, e as urgências não lhe davam tempo nem concentração para luvas protetoras. Remexer estrume, titicas de galinha, e ou mesmo a compostagem úmida de chorume, uma tarefa que fazia sem frescuras.

Agora em frente ao médico pés descalços, pontual e crédula. Ouvidos atentos.

“Buen día Milre como estas, recordando pie derecho para pisar el negativismo, pie izquierdo darte energía positiva. Vamos a quitar el vendaje y pasar de nuevo la sangre de dragon.” Juan Carlos animado ao lado do altar, sua mesa adaptada para os curativos.

“Estoy muy bien, aún con el ojo de pescado a picar el dedo, virus fuerte, mestre Juan.”

“Dame tu mano. Silenciate.”

* * *

Neste dia em que os pássaros revoavam sua horta a procura de novos alimentos recém plantados, seu dedo tratado e sua filha a seu lado, um breve sopro trouxe-lhe à mente o Pequeno Coração — “havia encontrado um local apropriado para ficar , receber suas três doses de leite, teria sido jogado no charco aos carniceiros abutres, virado a comida de homens de baixo ventre” pensava enquanto caminhava sentindo o aroma do Manacá que se abria em flores, tão adocicado aroma. Solitárias mãe e filha por paisagens de passagem, na troca por experiência as duas sobreviventes.

Uma rajada de vento frio em forma de halos perpassou-lhe dando sinal de conforto, uma paz sem nome. Pequeno Coração ainda estava vivo, sentia. Olhou para o horizonte e seus cumes verdes, para não medir o peso da caminhada, suas marcas e cicatrizes, entre um e outro sentimento de alívio e gratidão, abraçadas Milre e Audje:

“Te amo Audje, minha filha.”

“Te amo também mãe!”

Sílvia Schmidt é natural de São Paulo, morou no Nordeste e Sul do Brasil, saindo de Florianópolis em 2000 em voos mais ousados para Inglaterra e EUA, com o objetivo de estudar o idioma inglês. Formou-se Letras em Lorena-SP, especializações em Comunicação e Semiótica na PUC-SP, Sociologia e Política — USP, e Ontopsicologia em SC. Por 16 anos ministrou aulas de Literatura Brasileira. Em 2014 cria a editora para livros eletrônicos a Símbol@Digital, quando lança seu romance de estreia Duty Free (2000) em formato EPUB durante residência artística na Casa do Sol, em Campinas, no IHH (Instituto Hilda Hilst). Tem participado desde 2016 como mediadora em eventos literários em crítica interseccional, assim como, participado de antologias e revistas literárias com poesias, contos e ensaios.