o canto rouco, poema de Ricardo Carranza

I
_______________A noite é azul
na cidade vazia; e do túmulo do deus
imolado se desprendeu, como fogo-fátuo, um
rouco sussurro —
_____precário é o mundo do homem.
Levando Napoleão, Amarílis vai
às compras; à sua passagem o ar
enlanguesce de odor convincente e
pólen flutuante.[1] Antes, à mesa do café
da manhã, ela suspirou, solitária,
esfregando o rosto com as duas mãos
como se
a maquiagem da vida lhe pesasse
como chumbo. Já ouvi as sereias
cantando, umas às outras. Creio
que para mim não vão cantar.[2]
Inseparável
de seu cãozinho de estimação —
au,
au-au,
Amarílis vai ao supermercado.
_____Precário é o mundo do homem.
Maurício tem o atrito diário
com a mãe de oitenta e oito anos —
Você não sossega enquanto não me vê estendida numa cama!
Logo Maurício reina absoluto. Assiste a TV
num volume mais alto. Bate as cinzas do cigarro
no tapete. Anda nu pela casa e ninguém
mais pode com ele: ninguém.
_____Precário é o mundo do homem.
Dona Violeta sabe como é perfeitamente viável pensar
na morte enquanto a roupa centrifuga na máquina de lavar.
Todas as formações são passageiras, e aquele que se compenetra
bem dessa verdade
fica livre da dor.[3]
_____Precário é o mundo do homem.
O mendigo habitual,
mão em concha no ouvido esquerdo,
vai e vem na frente da farmácia
rente a uma linha reta imaginária.
Dona Violeta lhe estende generosa
fatia de bolo de fubá
num saquinho plástico reciclável.
Benedito lhe sorri, grato,
com cada um dos dentes da boca.
_____Precário é o mundo do homem.
No quarto cinza como a manhã
de chuva, ela alcança o que lhe pedem
com o olhar. Conhece bem esse olhar. Depois
de turnos de doze horas, até o raiar da íris
do paciente ela sabe tão bem quanto o seu.
Esse olhar que se orienta, ao mesmo tempo,
para duas direções opostas,[4] vai com ela,
passos de seda até o canto onde mora, até a
cama onde o seu corpo
treme
do repulsivo sonho mau. Esse
olhar, do homem que ora apoia o lápis contra
a folha de papel, ainda a faz esperar. E
a escandir a discórdia, o ponteiro do tempo
oscila. Pensa um pouco então no capricho
daquele homem, não pode deixar de julgar
aquele último gesto —
pois também ela não é feliz, enquanto anota
a hora da nossa morte, aquele olhar na borda
do insondável. Foi-se enfim, ela suspira. Agora
livre, tem de volta um nome, ressuscita
dos mortos e cuida das linhas de expressão
de um rosto cansado; tem sua água quente,
doce como carícias passageiras pelo
ventre estéril e flácido, e com dois travesseiros
nas costas, engole o comprimido com a xícara
de chá, depois de cruzar por avaras janelas
aos dias e noites gravados a fogo
em mãos tão pequeninas.
__________Noite
__________de outono no hemisfério sul,
__________ela perdeu o seu amor,
__________da janela de sua casa,
__________transparente, espaciosa e fria.
__________E teve o copo com
__________água até o limite;
__________foi o preço pago —
__________pela inépcia vestida de ousadia.
__________Quando se decidiu, enfim, percebeu,
__________pelo poema,
__________que seria uma lágrima auspiciosa
__________aquela gota.
_____Precário é o mundo do homem.
A relva leve se estendeu sobre teu leito
e te beijou com mil línguas de grama.
Porém não tu a mim.[5]
Ó inconsistência perplexa,[6]
ouça do coração de vosso pó:
_____precário
_____é o mundo
_____a escandir
_____sua íntima
_____discórdia.[7]

Notas:

1. Ulisses, Joyce. p.471. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.
2. A canção de amor de J. Alfred Prufrock, Eliot. p.29. Lisboa: Assírio e Alvim, 1985.
3. As palavras do Buddha. As três características, p. 61. São Paulo: José Olympio, 1948.
4. Ideia de prosa, Agamben. p.32. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
5. A tumba de AKR ÇAAR, Ezra Pound Poesia, p.61. São Paulo: Hvcitec, 1985.
6. Meditações, John Donne. p.13. São Paulo: Landmark, 2007.
7. Ideia de prosa, Agamben. p.31. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

Ricardo Carranza — São Paulo, 1953. Escritor, Editor. Publicações — Scortecci, Sesc DF, Cult, Clesi MG, Zunái, Stéphanos, Germina, Cult, Mallarmargens, Cronópios, O arquivo de Renato Suttana, Triplov, &Escritas.org., Gueto, Ruído Manifesto, Pensador, Pixé. Poe-sia: Sexteto, SP, 2010; A Flor Empírica, SP, 2011; Dramas, SP, 2012; Centelha de Inverno, SP, 2019. Artigos e Ensaios in http://revista5.arquitetonica.com/ desde 2005.