pretexto qualquer, de Ivan Hegen

É claro que se trata de uma regra arbitrária. Ria, se quiser, eu vou insistir no experimento. Todo novo período deste texto deve começar repetindo a sílaba que veio antes. Testo assim a paciência de vocês, mas com um pouco de sorte e empenho, pode ser que algo interessante inesperadamente surja. Jamais me considerei um seguidor de Georges Perec, mas não vejo motivo para recusar alguns jogos. Gostaria agora de evocar alguma história, e para isso reviro meus cadernos de apontamentos. Tosco que às vezes sou, vejo que esbocei uma vez um conto sobre homens-animais. Mais precisamente, trata-se de consciências humanas transplantadas. Das circunvoluções cerebrais extraem as mentes dessas pessoas, que são cuidadosamente transferidas para corpos de hamsters, leões, elefantes, dromedários, jacarés, zebras e outros, sob anuência e desejo expresso destes ex-humanos. Nostalgia de um atavismo inalcançável em nossa sociedade, cansaço da vida bípede, empatia por outras formas de existência, inclinação zoófila, as explicações dividem os pesquisadores. Resta aos parentes e amigos, conformados ou não, adotá-los como pets, quando a escolha transespecífica tem por objeto um animal doméstico, ou visitá-los em um zoológico especial, quando a opção é por um animal de grande porte ou impossível de se preservar em casa. Sabe-se que há casos bizarros de pessoas que teriam sido psiquicamente transplantadas para ovelha, boi ou outro animal de corte, e teriam deixado documentado o desejo de serem oferecidas para amigos e parentes em um suntuoso repasto. Tolerância tem limite, e é claro que apesar de se verem obrigados a aceitar aquela nova forma adquirida, os responsáveis não aceitariam tal imolação, não beberiam tal sangue, ninguém enfiaria a faca tão literalmente em um amigo ou parente, nem mesmo aqueles que já o teriam feito muitas vezes num sentido mais metafórico. Covardemente, devo admitir que perco a vontade de desenvolver este conto em detalhes minuciosos. S.O.S., peço arrego, apesar de achar que teria alguma graça a descrição das limitações de comunicação entre os humanos à moda antiga e os humanos tansespecíficos, que poderia extrair algum humor no oferecimento de pipoca a homens-saguis, homens-girafas e homens-lontras, e creio que não seria de todo ruim a sugestão de liberdade na corrida veloz dos homens-antílopes. Pesco um outro exemplo no meio dos meus cadernos e arquivos. Vossas senhorias que me perdoem. Em algum lugar, encontro uma opção mais realista, que é a de um cinquentão vasectomizado, alguém que jamais quis ter filhos e que um tanto a contragosto aceita receber em casa o sobrinho. Nhoque é o que ele resolve preparar para o menino, e sua vaidade o impele a caprichar na preparação do prato, resultando num primeiro gesto quase carinhoso. Sorriso do guri começa, bem aos poucos a mexer com o solteirão que durante décadas não se sentiu capaz de compactuar com o universo infantil. Tilt maior na cabeça dele foi quando o menino passou a falar coisas mais criativas do que esperava. Valeu um olhar de espanto e surpresa sua versão da vida após a morte. Teríamos no inferno um problema que não seria o de diabos nos espetando com tridentes, mas sim o problema da superlotação de todas as almas que ali foram descendo desde o início dos tempos. Possivelmente até as almas dos neandertais estariam ali, aglomerando. Doeu um pouco quando resolveu perguntar se dinossauros também estariam nesse inferno, porque o menino entendeu como acinte à lógica e respondeu com ar de desprezo. Zoeira ou não, o homem entendeu que havia uma coerência interna nessa imaginação que pensava de uma maneira quase séria sobre a superpopulação e sobre o acúmulo dos séculos. Los Angeles, onde estava sua mãe, não parecia muito longe através da chamada feita na hora da sobremesa, por Skype. Pela cara dela, parecia tranquila em notar que o menino estava bem, ainda mais com a alegria extra de tomar sorvete enquanto conversavam. Vamos que está na hora de você dormir, ela disse depois de quase uma hora. Racionalmente, o homem considerava uma ousadia colocar uma criança em um mundo tão difícil e sofrido, mas dessa vez foi dormir com uma ponta de arrependimento por ter feito a vasectomia. Miados de gato o acordaram no dia seguinte, e só depois de calçar os chinelos e colocar os óculos é que entendeu que se tratava do desenho animado em volume alto que o rapazinho assistia em seu celular. Lar com criança é mais barulhento mesmo, pensou, e ficou perplexo que a palavra “lar” tivesse assaltado sua mente, já que geralmente ele chamaria apenas de casa aquela sua moradia. Dia inteiro com o menino, domingo arrastado à espera da irmã que voltaria de viagem à noite, mas a preguiça foi das mais gostosas de que se lembrava, e no momento em que o garoto cochilou em seu ombro enquanto assistiam a um filme, ele não resistiu, mandou uma mensagem para a ex-namorada. Daria sem dúvida para resgatar o amor desgastado, calculou ele, se prometesse reverter a cirurgia e tentar com ela criar uma família. Lia cada resposta dela com um sorriso nos lábios, e lhe enviava as fotos do sobrinho para explicar que existia um fator importante a fazê-lo mudar sinceramente de postura. Raras vezes sentiu o calor humano que estava sentindo agora, e não queria envelhecer ainda mais sem deixar sua semente. Teria um filho com ela, se ela quisesse. Se era esse o principal motivo do término, não seria muito difícil reatarem com essa impactante decisão. São e salvo, o menino foi devolvido à mãe por volta das nove horas, e às dez e pouco a ex-namorada ali chegava. Vasectomia foi o assunto principal, e ambos se encheram de esperança e ternura pela expectativa de mudança repentina. Naquela noite, no entanto, levaram um certo susto após o entusiasmo inicial na cama. Maluquice, foi a palavra com que concordaram, afinal ela o conhecia bem e sabia que não era disso. Sobrava tesão, essa era a parte esquisita, sobrava tesão, ele estava emocionalmente excitado. Dolorosamente, porém, reconhecia que não havia nada que pudesse fazer seu pau se levantar. Tarefa adiada ou definitivamente autossabotada, teriam de dormir sem resolver a questão.

Ivan Hegen é mestre em Letras pela USP. Publicou A Grande Incógnita, Será, Puro Enquanto, Rock Book — Contos da Era da Guitarra (org.), A Lâmina que Fere Chronos e Clarice Lispector e as Fronteiras da Linguagem, além dos Desinversos no Instagram, artigos para diversos sites e revistas e conteúdo na Amazon. Atualmente trabalha como tradutor.