Deus nos havia moldado débeis. Minha tia morreu jovem, com duas respirações. Tive uma irmã que nunca conheci, porque morreu prematura. Contudo, isso nos afetava apenas momentaneamente porquanto Deus também nos havia feito com uma memória lânguida. Às vezes nos lembrávamos, às vezes não. Nossas recordações dissolviam-se tão velozmente como açúcar na água. Não nos lembrávamos sequer do que possuíamos.
De fato, por numerosos anos, as palavras eram o único objeto que possuíamos. Eram tão particulares que ficavam encarceradas na garganta e deixavam o corpo, vagarosamente, após a morte. Velávamos nossas mortas por sete dias e seis noites, apenas para auscultar seus segredos. Quando uma mulher de nossa família morria, ouvia-se o farfalhar de seu timbre por meses até que, finalmente, se apaziguava. Esse som entrava baixinho pelas frestas das janelas e nos fazia companhia. Se fechar os olhos, reverentemente, posso escutar ainda os murmúrios desabridos de vovó.
Vovó tinha lábios tão claros que sequer pareciam lábios. Eles se confundiam ao restante de sua pele e eram, por fim, pele, ou também, uma forma de manter dentro o que não devia sair. Tanta coisa que não devia sair. Órgãos. Promessas. Memórias. Mas, afinal, não é isso tudo o corpo? Não é isso tudo pele? Um ocultar que não se pode ver por que, uma vez visto, se estrepa?
Mamãe era uma criatura ímpar. Passava batom vermelho e escoava metade de si para fora quando falava, o que fazia minhas orelhas esquentarem e coçarem nas pontas por vergonha. Revelava-se tanto ao conversar que se tornava transparente beirando o desaparecimento. Julgo que fazia isso para se certificar de que era diferente de vovó. Porém, essa fala confusa era um disfarce.
Se entrássemos pelos lábios de mamãe e seguíssemos o caminho até sua garganta, veríamos que, assim como vovó, ela tinha pequenos nódulos insistentes, palavras vazadas de dor que não haviam sido pronunciadas, que não o seriam nem nos sussurros da morte. Sua língua era áspera, cheirava a sofrimento outonal e tinha sabor de umami. Lembrava-me dias ensolarados que subitamente se escurecem, murchando. Perto do dente molar, mamãe tinha uma cárie não cuidada, resultado dos doces que comera escondida tentando aplacar as dores de seu coração, os comentários alheios, as pequenas malvadezas de vovó.
Vovó era uma mulher de poucas palavras, tão poucas palavras que não me recordo de uma só delas. Pode ser a memória, mas acho que é somente o silêncio. Mamãe, pelo contrário, fala tanto que me atordoa com a capacidade de sua mandíbula de articular tanta coisa rítmica de uma só vez. Quando vovó morreu, mamãe escutou sua voz imóvel por uma semana. Sentava-se tão ereta que sua coluna distendeu perdendo a forma natural. Até hoje sente dores. Quando a banho, antes de dormir, mamãe geme com o contato suave da esponja em suas costas. Os homens não lhe apalpam mais, imagino seu mundo solitário no qual há apenas palavras vazadas das frestas vinda de vovó.
Vovó tinha vergões nas costas, tão profundos que o sangue desistia de circular e ficava acumulado nas feridas antigas. Quando a ajudava a vestir-se, ela me dava uma impressão de ser uma obra de arte. Um quadro impressionista. Os vergões de vovó eram a herança que recebera de sua mãe. Minha bisavó aplicava na carne dos filhos o sofrimento que conhecia de primeira mão: a vida abafadiça, o desabrigo, o medo que rompia ao escutar a maçaneta abrir-se devagar antes de ser violada.
Minha bisavó nunca deixou a fazenda onde nasceu. Sua vida aconteceu em treze quilômetros quadrados. Quando virou moça, evento que sucedeu cedo, seu pai, sem rodeios, casou-a com um amigo vetusto, na igreja e tudo. Deus não disse uma palavra a respeito da sua infância roubada. Ela chorou, todas as noites, até morrer. Depois de morta, continuou pranteando pelos cantos da casa. Chorou pelos filhos, já que também descontou neles sua dor. Acho que as palavras ferinas de vovó eram a metamorfose do chicote de sua mãe, queimavam na pele de mamãe, assim como mamãe fez honras em me queimar.
Na cozinha, próximo ao fogão, posso auscultar o eco de todas essas mulheres, de todos nossos laços. Mas, a sensação não dura muito. Mamãe está orbitando com tamanha força no andar de cima que sou ofuscada por seu rosto, sua presença, percebo que minha garganta também tem nódulos. Fragmento-me em tantos nacos que quase não sou capaz de juntá-los, porém, o terror que mamãe enxerta, faz com que cate os pedaços rapidinho e me faça inteira para preparar o jantar. Sou, afinal, herdeira de uma linhagem de mulheres que, apesar dos pesares, e eram muitos pesares, sobreviviam. Gostássemos disso ou não.
A vida, como Deus queria, incutia-se debaixo de nossas camas, entrava rastejando pelas unhas, alimentando-nos todos os dias, fizesse chuva ou fizesse sol. Por fim, quando a vida se satisfazia com nosso sofrimento, permitia-nos que, privadas de tranquilidade, falecêssemos. Era a nossa esperança.
A bebê chora. Caminho até o berço, com passos acorrentados pelo passado. Minha filha acabou de nascer e já tem mais passado que futuro. Possui as mesmas mãos pequenas tecidas por desespero como a bisavó, enquanto seus lábios são partes de mamãe, de um rosa desaforado. De mim, se herdou algo, foram os braços fracos. Ela ainda não fala, ou talvez não queira falar, já que não há muito o que dizer por aqui. De soslaio, contemplo outra vez suas pernas. São pernas de corredora, são pernas que nenhuma de nós nunca teve. São pernas para o futuro, pernas que podem ajudá-la a escapar. Do passado. De nossos laços. De mim.
Laura Elizia Haubert. Doutoranda em Filosofia na UNC (Bolsista CONICET). Graduada e Mestre em Filosofia pela PUC-SP. Participou de antologia de contos como As coisas que as mulheres escrevem, pela Desdêmona Editora, e de revistas literárias como a Revista Ponto do Sesi-SP e a Revista Subversa. Publicou em 2015 pela Editora Multifoco o livro Ode à Nossas Vidas Infames, em 2017, pela Editora Patuá, o livro Sempre o mesmo céu, sempre o mesmo azul, e, em 2019, pela Quintal Edições, o livro Memórias de uma vida pequena. Atualmente vive em Córdoba, na Argentina.