coluna últimas páginas #3

ultimas_pag_2020Novidade inicialmente planejada para sair com exclusividade nas edições trimestrais da revista gueto, nas versões dos formatos PDF, MOBI E EPUB, esta coluna Últimas Páginas (o nome já diz, entrarão nas páginas finais da revista) trará crônicas e informações sobre literatura, arte, política e demais assuntos de interesse de seu colunista, nosso editor-chefe, o escritor Rodrigo Novaes de Almeida. Mas a quarentena fez com que mudássemos os nossos planos. Pelo menos durante o confinamento, a coluna será aqui no portal e semanal, sempre aos sábados, para não alterar a programação das publicações semanais de segunda a sexta. Hoje, publicamos a terceira. Bem-vindxs!

Por Rodrigo Novaes de Almeida

CRÔNICA

Uma paisagem de outono

Rio de Janeiro, 30 de maio de 2020.

Enquanto o tratamento médico dava sinais
de que eu estava melhorando, mundos inteiros ruíam,
desapareciam completamente. Mundos que não voltarão
quando o confinamento passar, como os mortos.

Habitar sem intervalo este apartamento há semanas. Ou quase sem intervalo, com as idas ao hospital. Ver o mar da janela semiaberta do automóvel, da Uber ou do táxi; atravessar o túnel e contemplar a manhã ensolarada na orla de Botafogo, o Pão-de-Açúcar e as ruas desertas, tal como o calçadão.

Não há tráfego, os barcos e veleiros completam a paisagem da enseada.

Tanto tempo depois, retorno à minha cidade. Pensei que me sentiria um estrangeiro quando voltasse… Sem ninguém nas ruas o automóvel atravessa o Aterro do Flamengo — imagino que o sentimento seria o de ser um estrangeiro se houvesse toda a nossa gente nas ruas.

Não há aeronaves partindo ou chegando do Santos Dumont.

Em seguida, o automóvel entra em direção à Lapa para nos deixar no hospital na praça da Cruz Vermelha. Passamos sob os arcos e lembro-me das vezes em que estive aqui, com colegas ou amigos, nos anos em que trabalhei nas redondezas. Era comum beber um chope antes de ir para casa.

Nunca era um chope, e nunca uma lembrança me fez salivar como agora.

Minha mulher abre a porta do carro, ela pede para eu evitar usar as mãos, e depois que saímos — isto ocorre todas as vezes —, ela pega o frasco de álcool em gel para eu esfregá-las. Obedeço e sorrio sob a máscara. Ela não enxerga meu sorriso, talvez perceba meus olhos aflitos brilharem. Completaremos semana que vem nove anos juntos, entraremos no último ano de nossa primeira década (prefiro contar assim).

historia-880x528Todo momento é histórico, mas há momentos realmente históricos. Estamos vivendo um desses momentos realmente históricos. Outro dia pensei se não seria para estarmos realizando a famosa fantasia: o que você faria se realmente soubesse que tem apenas uns poucos dias de vida? Não sabemos quem sobreviverá a essa pandemia, estejamos confinados ou não, e escrever sobre este momento histórico terrível, e escrever sobre este momento realmente histórico e terrível com câncer, fazendo quimioterapia, faz com que eu me pergunte todos os dias: como? Não por que ou para quê. Como? Escrever com toda a sinceridade, escrever tudo o que consigo encerrar em mim dos acontecimentos, e de meus pensamentos e sentimentos mais verdadeiros, é a resposta que me satisfez dar a mim mesmo durante esse tempo. E assim tenho esse propósito de passar para as palavras ao menos um rastro de uma experiência autêntica.

O automóvel faz o caminho de volta. Vamos em direção à Cinelândia para pegar a via do Aterro outra vez. Lojas fechadas, lugares que frequentei diariamente durante anos, em uma vida anterior a esta. Vejo o Largo da Carioca, o final da Avenida Rio Branco, lembro-me dos cafés, dos sebos e das livrarias, das boutiques de relógios suíços (sempre fui um aficionado pelo mecanismo dessas máquinas) e das lojas de cutelaria.

Os dias se misturam e eu me recordo do Largo de São Francisco deserto dias antes, quando estivemos no entorno em um laboratório para eu fazer exames. Da faculdade de Filosofia fechada, de duas vidas atrás, ou são três já? De suas escadas antigas de madeira que rangiam sob nossos pés; éramos crianças aos 19 anos. Do jardim turco, onde eu me sentava a fim de escrever poemas ruins para as garotas e sonhava com diálogos filosóficos como os dos livros. Das sessões de cinema, e de uma mesa de conversa com a mãe do Glauber Rocha.

Ao sair do laboratório, passamos em frente ao Real Gabinete Português de Leitura, um dos lugares mais belos do mundo, ali, todo esse tempo. Era para lá que aquele rapaz de 19 anos ia quando se imaginava atemporal no mundo (deixo vago isto). Todas as portas estão fechadas. Todas as ruas, vazias. Um automóvel ou outro, e os dias passavam… Agora há mais gente nas ruas.

Enquanto o tratamento médico dava sinais de que eu estava melhorando, mundos inteiros ruíam, desapareciam completamente. Mundos que não voltarão quando o confinamento passar, como os mortos. Para quem ainda podia ficar em casa, e mesmo assim a morte poderia entrar, como entrou muitas vezes, não era, contudo, mais fácil do que para nós, não era apenas mais um dia à espera de uma vacina contra o vírus. Por outro lado, íamos e continuamos indo às ruas sabendo que cada saída é como apertar o gatilho de um revólver que está apontado para a própria cabeça, que nem um jogo de roleta russa.

Sobrevivi? Ontem e hoje, sim. É a resposta. A urgência, um sentimento que mesmo com todos os remédios tarjas pretas para dormir me deixavam insone (para que eu escrevesse!), até que os larguei, leva-me a outras questões, como: já não sei se isto é um fragmento do romance ou do diário. Em que pese o sentido da vida à pena da poesia, por que não?, tudo isto: um capítulo do romance Ensaio sobre a paisagem, que ora é novela, ora é ensaio, ora é diário. No entanto, logo eu sei que não colocarei no romance estas linhas.

Por essas ruas desertas em que a passagem do meu espírito, que é também corpo, mas que agora é também a química medicamentosa, que é também morfina há quase seis meses e todos os demais remédios para combater o câncer, se expande em tumultuosos pensamentos e sentimentos, eu convido o leitor em casa a vir comigo para dentro dessa paisagem de outono.

DICAS DE LEITURA

1. Em ficção, edição número 3 da Capitolina Revista, da escritora e editora Nara Vidal, no formato PDF para download livre. A número 4 já está disponível no site.

Link para o PDF: https://bit.ly/2XhcJSw
Link para o site: https://bit.ly/capitolina4

2. Artigo no El País “Cenas de uma pandemia de 1.500 anos atrás que se repetem hoje”, de Vicente G. Olaya. Pesquisa da Universidade de Barcelona destaca as surpreendentes semelhanças entre a pandemia do coronavírus e a praga de Justiniano que assolou o mundo em 541.

Link: https://bit.ly/36zt3SW

3. Laudelinas (e-book para download gratuito, 2020. Organizadoras: Rebeca Gadelha e Taciana Oliveira.)

laudelinas“O Brasil atualmente ostenta o quinto lugar mundial em feminicídio e o primeiro em feminicídio de mulheres trans e travestis. Somam-se a esses dados os inúmeros casos de violência sexual contra mulheres indígenas, a tentativa governamental de apagar a existência da população LGBTQ + e a conivência com uma estrutura social que provoca a manutenção do preconceito racial que vitima mulheres negras.

Laudelinas é uma provocação, um desabafo, uma canção denúncia e de resistência em um dos momentos mais nefastos da história do país. Nasce como uma coletânea de depoimentos, artigos, poesias, contos, fotografias e performances que procuram traduzir as constantes lutas das mulheres de diferentes etnias, trans e cis. Participam dessa edição autoras de todas as regiões do Brasil.”

Link: https://bit.ly/ebook_laudelinas

DICAS PARA ASSISTIR

Mesa: “Sonhos para adiar o fim do mundo”, com Ailton Krenak e Sidarta Ribeiro | #NaJanelaFestival da Companhia das Letras.

Esta mesa reunindo Ailton Krenak e Sidarta Ribeiro é imperdível e urgente em todos os sentidos. Krenak é imperdível e urgente em todos os sentidos. Tanto que estamos na terceira coluna e há indicações sobre ele em todas elas. Nesse bate-papo ele diz que nós precisaremos reconfigurar a gente para continuarmos a viver neste planeta. De forma poética, ele afirma: “Suspender o céu é ampliar os horizontes de todos os seres.”

Já para Ribeiro, a pandemia global é como se um automóvel estivesse capotando, e ele completa: “O carro ainda está capotando”. Não sabemos, portanto, qual será o estrago e como ele, carro, e nós, que estamos dentro dele, estaremos no fim do acidente. Se há realmente outro fim para nós nesse acidente, além do início da extinção da nossa própria espécie. Em determinado momento, Krenak diz acreditar que nós somos o único endereço desse vírus.

Sobre o que o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro está fazendo (deixando de fazer) para evitar que mais pessoas morram, os dois são unânimes. Diz Krenak que “nós estamos sofrendo um assalto à nossa ideia de cidadania e àquilo que acreditamos constituir uma República.”. Para Ribeiro, que estende a crítica ao mundo todo, “o capitalismo se desacoplou da ciência para lucrar mais.” Desse modo, “o 1% mais rico resolveu ignorar a ciência”.

Ailton Krenak ainda comenta de forma dura sobre o vídeo recém divulgado da reunião ministerial de Jair Bolsonaro: “Nessa gaiola de porcos eu não esperava nenhum pássaro”.

Sidarta Ribeiro finaliza alertando que se não formos capazes de abraçar todo o planeta a gente não vai durar, seremos uma nota de rodapé na história do planeta.

Link: https://bit.ly/krenak_sidarta

INSTAGRAM

mirada_logoMirada | @miradajanela

Mirada é um projeto colaborativo, um espaço dedicado às artes. Vale conferir! O e-book Laudelinas, que indicamos como leitura, é de lá.

POESIA

Não. Juro pelo Sol, dos deuses príncipe.
Que eu pereça da morte mais ignóbil,
sem deus e sem amigos, tristemente,
se meu peito abrigar tais intenções.
O que meu peito abriga, o que me punge
E infelicita a alma é o temor
De ver em minha pátria, que se extingue,
Novos males somarem-se aos antigos.

(fragmento de Édipo Rei, o coro, p.72, de Sófocles na tradução de Domingos Paschoal Cegalla, Difel, 1999)

CITAÇÃO

“Como um homem que vem candidamente trazer o seu grão de areia para o deserto do Saara na ilusão de que o enriquece, seja-me permitido dizer: ‘Romance por amor da vida’. Os maiores romancistas da humanidade foram grandes adoradores da vida. É um erro pensar que o romancista inventa histórias para fugir à vida. Pelo contrário. O que o leva a escrever romances é o desejo tumultuoso de multiplicá-la!” (Erico Verissimo, em “Os problemas do romance”, Folha da Manhã, 13 de agosto de 1939. Do livro Figuras do Brasil: 80 autores em 80 anos de Folha [Publifolha, 2001])

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A próxima coluna será publicada sábado, 6 de junho de 2020.