Brasil: (im)possíveis diálogos #19

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

Delação

Por Rodrigo Novaes de Almeida

printemps_ficcao
Vitor Rocha

Eu tinha 12 anos de idade quando me interessei por escutar as histórias dos outros, para os adultos, uma criança não eram ouvidos que se dessem importância, mal sabiam, esses homens da narrativa que estou prestes a contar, que de histórias reveladas em um restaurante de um clube naval, uma delação seria feita cerca de trinta anos depois. Talvez estejam todos mortos hoje, o meu pai, médico ginecologista obstetra e um dos mais jovens do grupo de amigos que jogavam tênis duas, às vezes três vezes por semana no clube, está morto há dez anos. Outro homem, um senhor já naquele tempo, alemão que dividia o ano em seis meses no Brasil e outros seis na Alemanha, não sei o seu ramo de negócio, eu costumava observar com mais atenção, talvez por ser um dos poucos estrangeiros que conhecia, um dos poucos homens com barba e cabelos ruivos que conhecia, e ter um sotaque estranho ao falar sobre a segunda grande guerra e a prisão depois de seu avião ser abatido pelas forças aliadas, talvez no espaço aéreo entre a França e a Inglaterra (o campo de prisioneiros era neste país), quando tinha 19 anos. Recrutado aos 17, ele dizia que muitas vezes acontecia de pilotos inimigos em voos de reconhecimento balançarem as asas do avião para informar ao inimigo que não estavam dispostos a travar uma batalha naquele dia. Não era sempre que funcionava. Não sei o que devo considerar anedota de um velho prisioneiro de guerra, mentiras ou exageros de um adolescente numa memória de quarenta anos atrás ou o que são verdades históricas em seus relatos, enquanto eu e meus irmãos mais novos jantávamos frango à la Kiev, as esposas falavam a respeito de frivolidades, e esses homens de meia-idade conversavam sem se importarem comigo; eu os escutava sobre seus trabalhos, suas vidas, que àquela altura, naquele tempo, me pareciam muito mais interessantes do que as de qualquer outro grupo, como as de suas mulheres banais. Evidentemente, eu não entendia tudo o que diziam. Havia em especial um homem baixo, gordo, para mim com rosto e jeito antipáticos, que era quem eu menos compreendia, apesar do alemão com sotaque carregado e de suas histórias fantásticas, era este outro um homem que, anos depois, conhecendo melhor os tipos humanos (e não necessariamente suas almas), eu o classificaria como desses que gostam de contar vantagens, assumir publicamente as próprias safadezas como conquistas respeitáveis, dignas de homens inteligentes que sabem aproveitar uma oportunidade, e se deleitam com isso; e os amigos, se não ouviam com admiração e um pouco de inveja, hoje eu especulo, ficavam instigados a compreender melhor como este país, dentre todos, realmente fazia as suas engrenagens públicas e privadas funcionarem há muitas e muitas décadas sempre iguais. Eram meados dos anos de 1980, a transição da ditadura acontecia de forma gradual e lenta como explicava o missal, como se espera de uma nação que investe em manter a memória do que é importante morta acima de tudo, o homem das oportunidades acabara de chegar a um posto de diretor de uma das mais promissoras empresas petroleiras do mundo, pública, nacional, filha de um país continental e mãe de centenas de cidadãos premiados, diplomados, fluentes em línguas de alto e baixo clero, especialistas no comércio exterior e no submundo do crime do colarinho branco. O digníssimo recém-empossado diretor vangloriava-se da nova casa na região serrana, era lá que todos os executivos dos esquemas da companhia compravam suas mansões, em condomínios fechados, e conversavam sobre como eram absolutamente homens especiais em um país como o deles. Cerca de vinte anos depois, eu conheceria outro diretor da mesma empresa, quatro ou cinco presidentes civis da República depois, com casa em um dos mesmos condomínios. Havia mais sofisticação, é claro. Mais dinheiro em jogo, também. O país era mais rico, o roubo maior. Este homem de negócios mantinha escritório em cobertura de prédio tombado da antiga capital federal, cidade da verdadeira sede da empresa, de onde podia ir e vir a pé, escritório no país mais rico do mundo e postos avançados em regiões de miséria da África, que davam milhões às empresas lobistas dele e de sócios ex-funcionários da estatal. “Mas antes eram outros tempos”, diriam homens de fala e gesto mansos, “agora os tempos mudaram e não vamos tolerar isso!” Esse outro diretor foi um dos presos durante uma das maiores investigações federais sobre corrupção de compra e venda de uma refinaria que mal poderia ser vendida a um ferro-velho, segundo os jornais. “Os tempos mudaram”, havia anos não comíamos mais frango à la Kiev, o diretor atarracado e antipático dos anos de 1980 já devia estar aposentado ou morto, os esquemas eram conhecidos por todos e replicados nas empresas privadas, setores inteiros concebidos dentro delas para a corrupção, uma corrupção civil-militar desde o início (tal como hoje, neste final de mundo interminável sobre esta terra devastada pela peste e pelos homens). Entretanto, eram tempos em que já estávamos um pouco distantes da anti-civilização dos antigos porões contra a ameaça comunista, o velho fantasma que amedrontava as noites de toda a gente mediana deste país. Tais bárbaros viriam depois, novamente, com crucifixos, o antigo testamento debaixo de um braço e a legislação importada do outro, pois a nação caíra nas mãos de um partido que se voltava para questões difíceis, complicadas, que nunca deveriam ser mexidas, feridas que não tocamos — “a miséria é um bem nacional e a senzala só mudou de nome há cento e trinta e um anos” é uma ladainha popular da pátria. A oportunidade para derrubar um governo, qualquer governo, ainda mais um nessas condições, e de rapinar todo um país outra vez todo o tempo esteve aí e o departamento de estado estrangeiro que contribuiu durante décadas para as ditaduras e as republiquetas de bananas do continente, como se tornaram de modo folclórico conhecidas em todo o mundo, sempre soube disso. Só que agora o ouro negro jorraria em abundância e havia uma tecnologia avançada para extrair um oceano de óleo de debaixo da terra e do mar. Então, aconteceu. A história, pelo menos esta, todos afirmam saber, independentemente do nome que dão. Mas as demais histórias todos também sabiam, dos tenentes e capitães aos generais, brigadeiros e almirantes, dos vereadores aos deputados, senadores e presidentes, dos engenheiros aos diretores das grandes empresas público-privadas, porque nada neste país é apenas público ou apenas privado, como nada da memória é guardado por muito tempo, mesmo em seus porões, mesmo hoje aqui, diante de vocês, deste tribunal, ao fazer minha delação, com mais de trinta anos de atraso, a delação de menino de 12 anos que adorava comer frango à la Kiev e ouvir histórias.

Rodrigo Novaes de Almeida (Rio de Janeiro, 1976) é escritor, jornalista e editor. Formado em Comunicação Social — Jornalismo, com pós-graduação em Publishing e passagens pelas editoras Apicuri, Saraiva, Ibep, Ática e Estação Liberdade. Autor dos livros Carnebruta (Contos, Editora Apicuri e Editora Oito e Meio, 2012), Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie e outros contos (Editora Patuá, 2018), finalista do 61º Prêmio Jabuti na categoria Contos, em 2019, e A clareira e a cidade (Poesia, Editora Urutau, no prelo), entre outros. É fundador e editor-chefe da Revista Gueto e do selo Gueto Editorial, projetos de divulgação de literatura em língua portuguesa e celeiro de novos autores.