Brasil: (im)possíveis diálogos #18

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

Peteca

Por João Maria Cícero

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Vitor Rocha

“Me forçaram a falar português.”

Forçaram-me, eu pensei… Mas quem fala assim hoje em dia? Ela falava bem, ela se comunicava. Não é assim a abordagem comunicativa? Nós só percebíamos que não era brasileira na famosa ‘peteca’ quando ela dizia palavras que começam com p, t e c (com som de k). Peteca é um símbolo que estudamos na aula de fonética do inglês. É uma sutileza do inglês que não existe em português e fica bem marcado quando não somos nativos. Esses três sons em inglês são aspirados. Falamos ‘time’ com uma aspiração do ‘t’, quase como uma tomada de ar. E a peteca marca bem a diferença entre brasileiros e americanos quando falamos a língua um do outro.

Enquanto ela ia explicando a experiência no Brasil, eu ia buscando falhas no seu português para que minha posição de poder pudesse ainda ter algum efeito. Os alunos quando voltavam do Brasil, chegavam senhores da língua — da minha língua. E dentro da minha posição de poder, eu precisava encontrar maneiras de garantir meu espaço de ‘learned’ e os alunos de ‘learners’ como se dizia em inglês arcaico.

“Não foi difícil. As pessoas no Brasil são muito simpáticas e todo mundo achava que eu era brasileira. Acho que pela minha raça…”

Ninguém usa a palavra raça no Brasil. Ninguém fala de raça no Brasil, mas todo mundo tem uma opinião sobre a sua cor, especialmente se você é estrangeiro. Ainda assim, quando ela fala ‘raça’ algo soa estranho no meu ouvido. Talvez seja o meu racismo internalizado, algo que ainda habita no meu corpo branco brasileiro privilegiado. No mesmo grupo, uma aluna me disse que eu era ‘branco’ — pausa — ‘brasileiro’. “Brazilian white”, ela disse em inglês. Afinal tal categoria não existia em português. Eu era branco, mas não white de acordo com ela.

“A parte mais difícil foram as aulas…” Interessante como a aspiração não aparece quando há um ‘r’ antes do ‘t’. Porém ela voltou com esse sotaque carioca, estava até falando ‘merrrmo’. Quem fala assim? Que som é esse? Eu poderia ensiná-los a não falar assim antes que fossem ao Brasil. Nós evitamos o uso do ‘r’ caipira, por que não evitar o ‘merrmo’? Porém, o ‘r’ capira está dominando São Paulo, até a capital… O refúgio do nosso ‘r’ cantado estava sendo tomado pelo ‘r’ caipira. O que será de mim na velhice? Eu vou ser aqueles velhinhos que falam engraçado, como quando eu era criança e achava graça dos velhinhos que ainda falavam o ‘r’ inicial como se fosse espanhol. “roda”.

“Durante as aulas eu fiquei muito perdida sobre o que fazer. Os professores não explicam a lição de casa….”

Lição de casa é bem infantil. Ninguém usa o termo na faculdade, mas aqui nos Estados Unidos, a universidade é um pouco (ou bastante) infantilizada e os alunos precisam de lição de casa toda aula. Eles precisam saber quantas páginas por dia precisam ler. Eu preciso dar lição de casa todo dia. Não existe aquele sistema de chegar e falar, falar, falar por horas. Os alunos pagam muito caro e precisam participar das aulas. Eles precisam sentir o produto pedagógico como um objeto físico que se pode tocar. Eu não sou suficiente. Os meus livros expostos no meu escritório para que os alunos admirem durante as minhas office hours, as palestras gravadas online, os textos publicados em algum jornal de prestígio. A aprendizagem é concreta nos Estados Unidos, é o preço do mercado educacional que cobra quase um quarto de um milhão de dólares por quatro anos em uma universidade de prestígio.

“Eu passei as duas primeiras semanas perdida sem saber muito bem o que fazer nas aulas. Era tudo tão fácil para todo mundo. Até que um outro estudante me ajudou e começamos a organizar as leituras dos textos da aula de História do Brasil. Era um curso muito bom. Eu aprendi muito sobre a história do Brasil. Muitas coisas que já tínhamos falado no nossa aula…”

NA nossa aula. Os alunos vão terminar o curso ainda trocando o gênero gramatical das coisas. Logo no início eu explico a diferença entre gênero social e gênero gramatical, mas algumas palavras vão até o final do curso sendo trocadas. Mensagem, ponte, leite, aula e classe, tema (na verdade todas as palavras que terminam em -ema e -ção). Apesar disso ela falava muito bem. Eu estava impressionado com a fluência dela.

“Falamos muito de ditadura, tropicalismo, democracia, golpes políticos… O Brasil é um desastre.”

Essa foi a primeira vez que eu interferi na apresentação. Ela disse ‘um desastre’ e deu um sorrisinho maroto. Como se ela tivesse preparado esse momento para dizer na minha frente. Ela sabia onde estava pisando. Ela sabia que não podia criticar o brasileiro, mesmo com o desastre do atual governo. Ela sabia que mencionar a palavra desastre tão perfeitamente pronunciada para o mais insatisfeito brasileiro seria um ataque. E ela ainda disse desastre como eu, paulistano, diria. Ela esqueceu a pronúncia do ‘s’ chiado carioca na minha frente.

Desastre…

“O que você quer dizer com desastre?” Ela estava preparada para a minha pergunta. A apresentação dela estava milimetricamente preparada. Ela havia inclusive pensado no tempo necessário para as perguntas.

“Not very diferente from us here in the U.S, né?” Enquanto ela comparava com os Estados Unidos, ela avançou um slide na apresentação e colocou uma foto dela com os colegas de curso. Ela era a única mulher no grupo de estudantes de Economia. Ela usava uma gravata, símbolo da faculdade. Ela era a única pessoa ‘de cor’ na foto, no meio de uns trinta ‘white brazilians’. Ela sabe que eu conheço a expressão em inglês “a picture is worth a Thousand words”. Ela sabe que eu sei que o Brasil é um desastre…

“Pode continuar de onde você parou a sua apresentação.”

João Maria Cícero é escritor e parte do professor João Nemi Neto. Ele mora em Nova York e dá aulas de português. Como poeta, ele já fez parte da coletânea Tente Entender o que tento dizer. Poesia: HIV/ AIDS organizado pelo poeta Ramon Nunes Melo (Bazar do Tempo, 2018). Ele também colaborou com um coletivo de escritores latino-americanos para o livro The US without us (Sangría Editores, 2016). Seu último livro Corpo(s) (2017) foi publicado pela Editora Giostri em São Paulo. Como professor, ele escreve sobre sobre Pedagogia e teoria queer com foco em sexualidade e gênero. Seus artigos já saíram nas Revistas Foreign Policies, Intellectus entre outras. Seu próximo livro, Anthropophagic Queer: Contemporary Brazilian Cinema, sai em 2020 pela Wayne State University Press nos Estados Unidos.