Brasil: (im)possíveis diálogos #17

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

“E daí?”

“Cara, desculpa, eu vou falar uma coisa. Assim, na humanidade não para de morrer. Se você fala em vida, do outro lado tem morte. E as pessoas ficam ‘ó, ó, ó’. Por quê?” (Regina Duarte)

Por Angélica Amâncio

printemps_ficcao
Vitor Rocha

Por que
esse vírus
raivoso
parece latir
rumo ao porão,
ao precipício,
ao fundo do poço?

Treze de maio
132 anos depois
da canetada de Isabel, a princesa,
o número de negros
mortos
de coronavírus
no Brasil
quintuplica.

Faz dois meses
apenas
a primeira vítima
partia:
empregada doméstica
cento e vinte quilômetros
por dia
de Miguel Pereira
até o Leblon.

A patroa
recém-chegada da Itália
não mencionara
trazer na mala
como souvenir
um vírus.
Afinal, para quê mostrar
resultado de exame
para a gentalha, meu Deus?

Enquanto isso,
no Norte,
onde a floresta
continua a virar sertão,
o número de mortos
entre os indígenas
cresceu
em duas semanas
800%.

Longe dali,
em carros que custam
600 vezes
o valor
do auxílio emergencial,
marionetes desfilam
pelo fim
do confinamento
dos pobres
em verde-e-amarelo
alheias, insensíveis
à dança incessante
das escavadeiras.

É preciso
que cavem
velozes
que varram
para debaixo
da terra
os corpos
tantos, tantos
para que passem
a morte
como passaram
a vida
subnotificados
anônimos
atônitos
empilhados
uns sobre os outros.

Se tivéssemos
como presidente
um bom coveiro
e não um fake messias
talvez ao menos
no sepulcro
o abismo
que nos divide
não fosse tão profundo.

(13 de maio de 2020).

Angélica Amâncio é doutora em Literatura Comparada pela UFMG, em cotutela com a Université Paris Diderot — Paris 7. É pós-doutora em Literatura francesa, pela USP, e em Literatura lusófona, pela Université Sorbonne Nouvelle. Atualmente, é leitora de português na École Normale Supérieure, em Lyon, e chargée de cours no departamento de Estudo Ibéricos e Latinos-Americanos (EILA) e na l’ESIT (École supérieure d’interprètes et de traducteurs) — Paris 3. Suas pesquisas são voltadas, sobretudo, para as relações entre Literatura, outras artes e mídias. É também poeta, autora do livro Adagio ma non troppo e outras canções sem palavras (2015).