Brasil: (im)possíveis diálogos #16

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

Confabulação

Por Virna Teixeira

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Vitor Rocha

Sentaram-se à mesa de jantar da enfermaria para a reunião usando máscaras. Movimentos gestuais. A linguagem das máscaras é intransitiva? Ela não lembra do acidente. O hipocampo foi lesado no começo da pandemia.

Sentada à mesa sem máscara diante da equipe. Como se estivesse nua e vulnerável, a boca e o nariz expostos. Os rostos recobertos, sentados em distância geometricamente precisa, estão fixados nela. Sua perplexidade não é neurológica, é real.

Este é um sonho ruim? Uma espécie de inquisição?

Amnésia anterógrada. As datas não significam nada. Há notícias sobre este vírus em toda parte.

Ela quer sair para fumar. Ela não lembra da admissão. Seu corpo mudou. Antes caminhava pelos corredores como uma escultura de Giacometti, os braços longos e pendulares. Agora precisa de roupas novas, mais largas. Manequim 38.

Lembra que estava numa livraria em Nova Iorque, em agosto de 2019, mas isto foi muito antes. Pensa que meu nome é Doctor Maria, porque sou latina.

No dia do acidente eu descia a rua com cervicalgia, após uma tração súbita e recente nas costas. Estava tonta e com choques descendo pelos braços. Tive delírios de neurologista com minha coluna. Imaginei que perderia meus movimentos. Quando alcancei o metrô tinha palpitações e suava.

Não sei quanto tempo passei no metrô. Eu estava fora da realidade, eu olhava para algumas pessoas com máscara e tinha medo. Concentrei na respiração. No trajeto, fui me acalmando. Era um ataque de pânico.

Cheguei em tempo para a reunião, foi um dia longo, que culminou com o acidente. Corremos. Lembro dos gritos, da garota anoréxica que chorava sem lágrimas, porque estava muito desidratada.

Mas ela sobreviveu. E esqueceu de tudo. Na semana seguinte, começou a quarentena.

Virna Teixeira nasceu em Fortaleza em 1971. Poeta, tradutora, contista e editora. Seus livros de poesia foram publicados na América Latina, Portugal e Reino Unido. Virna tem um trabalho prolífico como tradutora, e publicou títulos de poesia escocesa, sul americana e francesa; numerosas traduções de língua inglesa; e versões de poesia brasileira para o inglês. Vive em Londres e dirige um projeto editorial independente, Carnaval Press, além de editar a revista bilingue Theodora. Ela também é médica e trabalha em hospital psiquiátricos no NHS.