A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.
Despedida
Por Leonardo Valente

— Eu queria poder lhe dar um abraço bem forte nesse momento tão difícil, mas não vai ser possível. Seu marido acaba de partir aqui do meu lado — contou chorosa a médica intensivista do hospital de campanha no Estádio do Maracanã, em videochamada da tela de seu tablet para o smartphone do primo.
O mundo que ameaçava desmoronar em etapas desabou por inteiro de repente. Tudo ficou turvo, sem sentido e aquelas palavras não pareciam conexas. Como assim ele morreu? Dez anos mais novo, 32, saudável, uma vida pela frente. Lindo. Engenheiro civil bem-sucedido, amante das artes, sensível. Como assim o casamento de um ano e meio terminou? Aquele casamento com uma festa inesquecível para as duas famílias na beira de uma praia paradisíaca ao pôr-do-Sol, como ele ousou ir embora? Quem vai fazer o jantar depois de um dia cansativo de trabalho? Quem vai se jogar no sofá, sorrir e falar sobre as bobagens e problemas do dia? Quem vai envelhecer junto e organizar a aposentadoria para morar em Portugal? Como ele tem coragem de interromper planos tão pequenamente grandiosos, tão doces e tão dependentes dos dois?
— Você precisa ser forte, primo, muito forte — pediu dessa vez aos prantos a médica, que precisou respirar fundo para continuar — você não pode sair do seu apartamento porque com certeza está contaminado, só não tem os sintomas. Não temos mais testes para confirmar, não temos mais equipamentos de segurança, não temos mais nada, nem sei como conseguiram montar essa UTI aqui no estádio, o hospital era para ter só leitos de enfermaria, mas a situação está muito grave, muita gente doente jogada nas calçadas, muita gente morrendo em casa. Seu filho está bem na casa da sua mãe, deixe-o lá por mais umas duas semanas, pelo menos, nem ele nem ela podem ter contato com você, e nem podem ir à rua, para o bem deles.
O filho. O que será do filho? O menino de três anos adotado e que chegou para alegrar a família quatro meses antes da pandemia. Como será criado só por um em vez de dois? Como é que se paga sozinho a prestação do apartamento? E a pequena poupança que está na conta dele? E o carro que está em nome da sogra, mas que é de ambos? E a conta no Instagram com fotos da família dignas de novela, quem tem a senha? E o amor, e o companheirismo, e os cinemas às sextas, teatros aos sábados e restaurantes aos domingos? Quem foi que morreu? Não pode ser ele, é algum engano, com certeza não faz o menor sentido, a TV tem denunciado muito erro desse tipo.
— Ele foi embora dormindo, nós o mantivemos em coma induzido. Foi tudo muito rápido, apenas três dias de UTI. Pelo menos não sofreu muito — tentou consolar a médica.
Meu Deus, três dias. Só três dias. Cinco de enfermaria de hospital e três de UTI. Semana passada ele estava em casa, fazendo risoto no meio da quarentena quando começou a tossir. Ponta de febre, coisa leve. Dormiu bem, acordou com um pouco de falta de ar e achou melhor ir ao médico. Ficou internado por precaução, ligava para casa duas vezes por dia, perguntava como estava o menino, como estava tudo. Parou de ligar quando piorou e foi transferido do hospital superlotado em Copacabana para a UTI no Maracanã. A prima disse que ele era forte e que ficaria bem, que daria notícias toda hora, que já já voltava para casa. Cadê as notícias sobre o estado dele? Ela está devendo. Quando ele volta? Por que não pode falar no celular?
— Assim que você me ligou para falar da transferência, vim para cá e me ofereci como voluntária, eles estão sem médicos e cuidei dele cada minuto. Você tem comida em casa, primo? Paracetamol? Tem Rivotril? Você vai precisar tomar. Ninguém pode ficar aí com você, ninguém vai poder te abraçar, te consolar e dar o ombro para você chorar. Você precisa segurar essa barra sozinho, mas nossa família está com você mesmo à distância. Se passar mal ou tiver falta de ar avise e corra para um hospital. Quer que eu peça para deixarem compras na portaria? Prefere comida pronta? O que você está precisando, olha para mim, fala alguma coisa, pelo amor de Deus. Eu também vou precisar de você agora, de sua ajuda, por ele.
Comida? Pra que comida? Comida em quarentena engorda. Alguém tem que ligar para a mãe dele que mora em Roma, ela nunca atende o telefone. O maldito genocida que está no Planalto não disse que era só uma gripezinha? Ela votou nele, filha da puta! Como se contrata funeral sem sair de casa? Ele precisa de um funeral digno, precisa de tudo de bom e do melhor que se pode oferecer, de carinho, de companhia, de alguém que atravesse essa barra junto, que segure as pontas porque tudo vai passar, sempre passa. Ele precisa de uma linda coroa de flores, quem vai trocar a roupa e fazer a maquiagem? Ele é muito vaidoso, não pode parecer abatido no funeral. Como pega atestado de óbito? INSS dá direito à pensão para casal homoafetivo? Ele vai precisar tomar uma sopa quando chegar em casa. Sem sair de casa fica difícil comprar as coisas para a sopa que tanto gosta, de repente ela pode realmente deixar algumas compras na portaria.
— Não vai ter funeral, primo. O corpo vai ser levado em caixão fechado para ser cremado em outra cidade. O caminhão do Exército vai levar. Aqui não tem mais como. O lado de fora do estádio está cheio de caixões, as calçadas do bairro estão lotadas também, só na entrada do metrô tem uns trinta. Eu preciso de você, primo, eu preciso que seja forte, porque a gente precisa liberar o corpo, é o que a gente pode fazer de mais digno para ele neste momento. Quanto mais rápido a gente liberar o corpo, melhor para ele, menos tempo vai ficar por aqui. Você me ajuda, meu querido? Vou resolver tudo, mas preciso de você.
O apartamento acabou de ser pintado, está novinho. O quarto do filho está todo decorado. Ele cuidou dos papéis de parede, escolheu a dedo, tanto o do canto da sala, preto e branco, quanto o do quarto do menino, todo azul. O imóvel de três quartos, com uma suíte e uma varanda, está lindo. Os tempos são muito duros, ninguém sabe quem vai segurar o emprego, o Brasil tem um governo insano e perdido que vai matar mais que o vírus, mas um casal unido e que se ama supera tudo. Não tem problema, as férias programadas para a Europa, por exemplo, vão virar férias no Nordeste os três serão muito felizes nessa viagem. Praia, Sol, pousada, comida típica, forró à noite, vai dar para fazer tudo. Essa doença maldita vai passar, serão necessários alguns sacrifícios e muita solidariedade, mas todos sairão mais fortes dessa. É horrível ficar em casa sozinho, mas é para o bem da família e essa fase vai acabar. O menino está seguro na casa da avó que mora no Rio, e que fica a duas quadras. Ele mesmo pegou o carro e o levou, para em seguida ir para o hospital. Tudo está bem e continuará bem.
— Meu querido, fala comigo, você não disse uma palavra, fala alguma coisa, por favor — pediu a médica ainda chorosa e muito preocupada com o primo. — Eu vou virar o tablet e vou mostrar o rosto dele para você, tudo bem? Não vai demorar. Eu mostro e você me diz sim, é ele, ou só faz um sinal de positivo com a mão, está certo? Ele está bem, não está inchado, está como se estivesse dormindo, só com os lábios um pouquinho roxeados e o rosto um pouquinho mais pálido, mas ele é lindo assim mesmo. Sempre foi muito bonito, está tão bonito quanto no dia do casamento de vocês. Assim, você também se despede dele, meu amor. Você manda um beijo, diz que o ama. Tenho certeza de que ele vai te ouvir, pode ser?
Sim! Todo mundo ouviu o aceite emocionado em alto e bom som naquela cerimônia inesquecível. Um casamento entre iguais que se amam é sempre um evento histórico, um recado de que há algo mais forte a unir os homens do que apenas a vontade dos hipócritas. Ali, todo mundo tinha certeza de que seria para sempre, “até que a morte os separe”, como disse o juiz. Quanto tempo ainda de quarentena? Por que o ministro da Saúde cada dia recomenda uma coisa diferente? Haverá uma guerra depois disso tudo? Como estará o país quando chegarem as bodas de prata? Como é que se corta o cabelo no meio dessa confusão toda se os salões estão fechados? E o funeral, ela não explicou o que é preciso fazer para organizar o funeral, é tão difícil nessas horas. Não! Espera! Parece que a construtora em que ele trabalha tem auxílio funeral, eles organizam tudo, mas será que está valendo, mesmo com o corte de metade do salário? Se cortaram o plano de saúde no meio da pandemia, podem ter cortado ao auxílio funeral também, as empresas não se importam com ninguém. Será que ele conseguirá segurar o emprego?
— Querido, olha ele aqui — disse a médica, apontando a câmera do tablet para o corpo do rapaz em cima da maca de UTI, com um avental azul e uma placa de metal bem sobre o peito com o número 2020 — Ele está sereno, ele está bem, primo. Ele precisa ir, outros estão esperando essa vaga aqui, tem muita gente precisando, tem fila de gente morrendo. É hora de se despedir. É ele? Diz para mim ou só faz um ok com a mão.
— Não é ele! Sou eu!
Leonardo Valente é escritor, jornalista, professor de Relações Internacionais e diretor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ. Em ficção, publicou os romances Charlotte Tábua Rasa (2016), O beijo da Pombagira (Editora Mondrongo: 2019), finalista do Prêmio Rio de Literatura, e a antologia Apoteose (Editora Mondrongo 2018), finalista do Prêmio Sesc de Literatura. É junto com Carol Proner organizador da coletânea Antifascistas (Editora Mondrongo 2020), que reúne 32 autores que formam parte relevante da literatura lusófona contemporânea. Um de seus originais ainda não publicados, o romance A procissão, foi vencedor do Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores (UBE), em 2017. Foi um dos escritores convidados para a Primavera Literária Brasileira 2019 e 2020, na Europa.