Brasil: (im)possíveis diálogos #14

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

Escalda-pés

Por Deborah Dornellas

Brasília, 29 de fevereiro de 2020.

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Vitor Rocha

Querido Maurício,

perdão pelo meu longo silêncio. Não tive condições de lhe escrever. Muitas coisas andam acontecendo por aqui.

Hoje é sábado. O último sábado de fevereiro de 2020, ano bissexto. O carnaval passou sem que eu prestasse muita atenção. Só vi partes do desfile das escolas do Rio pela TV, como costumávamos fazer juntos. Penso em você todos os dias, mas nas manhãs de sábado sua lembrança me vem mais vívida. Tenho saudade de tudo. De nós, das nossas caminhadas pela quadra e além.

Já não caminho mais na quadra. Nem à padaria consigo ir. Não sei se é artrose ou desencanto.

Na última vez que saí fui à farmácia. Devagar, com dificuldade. Como uma velha. A velha que sou. No balcão, uma moça muito maquiada e com longos e grossos cílios me atendeu. Pedi o remédio para regular a pressão e ela, quase tropeçando nas pestanas, foi buscar duas caixas nas estantes de dentro. Voltou sem pressa, com o medicamento nas mãos, sem sequer notar que eu não tirava os meus olhos cansados dos seus. Quando fui pagar, a moça do caixa, sem maquiagem e com cílios de tamanho normal, tentou me empurrar uma porção de tranqueiras: latinha de Vick Vapo-rub, bastões para proteger os lábios, creme para as mãos, que a seca foi braba, cortador de unhas e um novo antiácido que é tiro e queda. Deve ter me achado mais velha do que sou. Dessas senhorinhas a quem acham fácil enganar. A mim não enganam assim. Já perdi muita coisa na vida, minha filha, disse a ela, mas o juízo e o discernimento ainda estão aqui.

Nunca imaginei que viveria tantos anos depois que você se foi, Maurício. Nos últimos dias, passo horas ouvindo rádio ou consumindo meus olhos na frente da TV de plasma que Renato me deu antes de ir embora, em novembro passado. É assim que tento driblar a solidão e desviar minha atenção dos pensamentos incômodos que me assombram. Não me afeiçoei ao computador, por mais que Renato insistisse. Assisto às novelas como nunca fiz antes. E a programas que mostram a vida selvagem nas florestas, essas coisas. Vida selvagem tem sido a nossa aqui. Ando até evitando o noticiário nacional. Nem os jornais eu leio todos os dias. Parei de assinar. Todos contam o que não quero saber. Não quero saber mais nada sobre este país. Não reconheço este lugar. Esta cidade. Nem mesmo a nossa quadra eu reconheço. Não se veem mais crianças brincando debaixo dos blocos. A banca de jornais fechou. Os jardins estão abandonados, cheios de mato, e o parquinho agora é um quadrado tristonho com areia imunda e brinquedos enferrujados. Estamos todos enferrujados, Maurício. Paralisados. Somos espectadores inertes de nós mesmos. Não nos levantamos do sofá nem para mudar o canal da TV. Vivemos no planeta do controle remoto. Como robôs repetindo tarefas. Eu sei que envelheci. E Brasília envelheceu junto comigo. Estamos ambas exaustas, com a pintura descascada. Nossas juntas doem porque não nos movimentamos mais. Emperramos em algum lugar que, de tanto renegar o passado, parece não ter futuro.

Como eu disse em cartas anteriores, o Teatro Nacional está em ruínas há anos, a agora a Esplanada e a Praça dos Três Poderes foram ocupadas por micróbios da pior espécie. Nem o Itamaraty escapou. Estão destruindo tudo. Os gramados da cidade não rebrotaram depois da seca de 2019, e os ipês estão desistindo de nós. Não ouço mais as cigarras ciciando nas árvores, mas talvez tenha ficado meio surda sem perceber. Você ficaria devastado se estivesse aqui, neste cenário de fim de mundo. Apesar de eu ser uma década e meia mais velha do que Brasília, acho que tenho lidado melhor com a decrepitude. Mas voltei a ter medo. Um medo indistinto, diferente daquele que eu tinha antigamente, quando tudo estava no limite. Pensávamos que aquilo nunca iria acabar, não é? Mas acabou. Às custas de muitas vidas, inclusive de parte da sua. Agora querem trazer o pesadelo de volta, atualizado.

Depois de muito tempo sem sonhar com o horror, ontem tive um sonho com aquele dia em que os soldados da PE o levaram. Acordei como se tivesse revivido a cena inteira. Renato era recém-nascido e estava dormindo no quarto, depois da primeira mamada do dia. Era domingo. Lembro bem o dia porque eu estava na cozinha, fazendo o almoço como só fazia aos domingos, quando os homens espancaram a porta dos fundos. Eles sempre preferem a porta dos fundos. Você estava no sofá da sala, lendo jornal. Os soldados foram entrando aos berros, tentei impedir, Renato acordou e começou a chorar, fiquei desorientada, não sabia se corria até o quarto para acudir meu filho ou se tentava impedir que a PE levasse meu marido. Enquanto eles o carregavam com violência, olhei nos seus olhos e não vi medo, somente uma sombra, uma tristeza por saber que estava nos deixando por tempo indeterminado, sem saber o que fariam com você e conosco. No meu sonho de agora, era Renato, já adulto, quem estava sendo levado preso, mas eu não chorava como chorei naquele domingo de 1970 e ao longo dos meses todos que se seguiram à sua prisão. No sonho, eu enfrentava os soldados com os olhos secos e a força das mães. Quando você voltou, Renato já tinha os dois dentes da frente e caminhava pelo apartamento, com o passinho trôpego dos bebês. Você voltou tão cansado, Maurício. E mais calado do que de costume. Quando vi sua mão esquerda toda deformada, senti náuseas e quase vomitei. Seus dedos quebrados em todas as falanges, mal calcificados, foram a visão mais triste da minha vida. Nunca lhe disse isso com todas as palavras porque sabia que doía em você. Em mim ainda dói. Renato sempre quis saber como papai tinha machucado a mão. Inventamos uma história qualquer e ele acreditou. Ou fingiu acreditar. Mesmo depois que você se foi, Renato e eu pouco falamos sobre isso.

Foi boa sua ideia de se fingir de canhoto enquanto esteve preso. Os homens deixaram sua mão esquerda completamente inoperante, achando que assim você nunca mais escreveria uma linha ou desenharia uma charge sequer contra o regime. Mas você era ambidestro e usava muito bem a mão direita. Lembra quando você ensinou Renato a desenhar com as duas mãos? Tenho todos os desenhos, dele e seus, guardados. Os artigos publicados e os censurados também. Mas as letras e traços estão sumindo nos papéis amarelados. Vou mandar digitalizar os desenhos e transcrever os textos, para reunir tudo num livro. Renato vai me ajudar, mesmo de longe. Será um belo presente nosso para você.

Foi uma travessia penosa para mim, mas consegui rever todo o material. E nem o sonho ruim me fez desistir da ideia do livro.

Acho um privilégio ainda poder usar as mãos. Mas suponho que em breve não consiga mais fazer muita coisa com elas. A artrose me atropelou. Por isso as cartas estão rareando tanto. Esta me custou quase uma semana para terminar e passar a limpo. Minhas mãos doem muito quanto começo a escrever, e logo tenho que parar, alongar, passar unguentos. Olho para as minhas mãos deformadas e me lembro da sua mão esquerda. Isso o traz mais para perto de mim de um jeito estranho.

Espero ainda conseguir escrever mais algumas cartas. Na próxima vou lhe contar mais detalhes sobre um novo vírus que surgiu na China em dezembro e está matando muitas pessoas, principalmente velhos. Chamaram de coronavírus, porque o formato da molécula parece uma esfera coroada. Esse vírus já existia e agora veio numa versão 2019, mais agressiva. Vi na TV que isolaram uma cidade chinesa inteira, para tentar conter o contágio, que é muito rápido. Mas o tal vírus já viajou para fora da China. Há muitos casos na Itália e em outros países da Europa, e há três dias noticiaram o primeiro caso no Brasil. Um homem trouxe o vírus de avião, direto da Lombardia para São Paulo. Espero que essa virose não viceje aqui. Já há muita infecção neste país. Não precisamos de mais vírus letais. Temos muitos. Um deles é o atual presidente. Mas não vou falar dele. Hoje não. É sábado.

Sinto sua falta, Maurício. Muito. Como se as décadas não se tivessem passado. Minhas lembranças não sumiram na voragem do tempo. Estão todas aqui dentro. A memória remota é uma das poucas coisas que me restam. Estas cartas, que jamais serão lidas pelo destinatário, são meu único antídoto para as manhãs solitárias, as tardes chuvosas e as noites frias. Ainda há noites frias em Brasília, sabe? Nelas, minhas mãos e pés doem ainda mais. Quando os pés doem muito, penso em fazer escalda-pés, como os que você fazia para mim, depois das nossas caminhadas. Perfumados com camomila. Mas não seria a mesma coisa.

Saudade eterna,
Gilda

Deborah Dornellas, carioca criada em Brasília, é escritora, jornalista, tradutora e aprendiz de artista plástica. É formada em Letras (PUCCamp, 1981) e Comunicação (Jornalismo, UnB, 1992), mestra em História (UnB, 2001) e pós-graduada em Formação de Escritores (ISE-Vera Cruz-SP, 2014). Em 2012, publicou Triz (In House), uma reunião de poemas. Desde 2013, integra o Coletivo Literário Martelinho de Ouro e tem participado de todas as publicações do grupo. Foi uma das autoras convidadas a participar do Printemps Litteráire 2020. Por cima do mar, seu romance de estreia, foi o vencedor do Prêmio Literário Casa de las Américas 2019, na categoria Literatura Brasileira.