A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.
Sítio Dois Irmãos
Por Márcio Benjamin Costa Ribeiro

— Valha-me, Deus.
Dona Ceiça acordou sufocada. Se sentou na cama dura, passando a mão na cara banhada de suor. Levantou-se devagar, ainda tonta de sono e foi tomar um gole do resto da água que sobrava na quartinha de barro do quarto apoucado.
Devagar, a respiração foi voltando pro lugar, enquanto a frieza da caneca de alumínio lhe arrepiava os beiços enrugados.
Mais um sonho. Agora com o marido novo, os dois na festa de casamento, ainda na fazenda antiga, antes do sítio. Ela também moça, arrumada, comendo tanto do bolo tão branco, sabendo que ia desarranjar. Ernesto jovem também. Tão bonito, meu Deus. Tanta gente, e aquele cheiro de vida.
E de repente ela se dava conta que não era não, que agora era mentira. Aí acordava agoniada, com aquele silêncio lhe doendo os ouvidos, sentindo a camisola velha subir e descer nas costelas magras como sendo a lona de um circo.
Eita da coisa linda era um circo. Tanto do bicho. O coração transpassava quando viam anunciar na cidade. Uma ruma de moça bonita, como ela, quando jovem, no casamento.
Fazia tanto tempo.
Dona Ceiça foi pra janela em busca de um pouco de ar. Já nem sentia mais o cheiro de podre, sempre em algum lugar.
Lentamente o sol insistia, manchando de um vermelho desmaiado o céu ainda escuro.
Ela achava que era a pior hora. Acostumada, sempre acordava antes do raiar, ou antes do galo cantar, como se dizia antes. Há quanto tempo?
Ali já não se fazia sentido.
Tinha muito que bicho deixou de ser. Os mais novos que sobreviveram nem se lembravam mais como era o cantar do galo. Claro que encontravam foto, filmagem, mas a lembrança andava sumida, como a fumaça preta do meio da rua subindo pro firmamento.
Na casa vazia, as chinelas estalavam cortando o calado.
Já tinha desistido de falar sozinha fazia era tempo.
Com medo de ficar doida de vez, se prendia à rotina.
Arrumar as gavetas.
Dobrar a roupa.
Acender as velas do oratório.
Tirar a poeira escura dos móveis gastos.
Se esconder debaixo da cama quando batiam palmas do portão sempre trancado.
Lembrou-se do susto lapeando o coração quando tentaram entrar, se dizendo do governo. A senhora tomou coragem, apeou na janela a espingarda velha do marido e acertou um, que saiu pingando sangue pra dentro do carro.
Nunca mais.
Suspirou enquanto abria um dos últimos pacotes prateados da ração deixada na porta, carimbados com o brasão da Federação.
Fazia quanto tempo, minha Nossa Senhora?
Que dia era hoje?
Marrom e pastosa, só tinha era sabor de comida de bicho.
Quando tinha.
Dona Ceiça ainda sentia cheiro? Ainda provava gosto?
Lambendo os dedos grudentos, se lembrou de quando andava de cavalo por dentro da fazenda velha, experimentando embaixo das pernas o calor firme do animal.
Tinha acontecido mesmo? Ou era o diabo daqueles sonhos de novo?
Cuidadosa, levou o pacote pra pia e lavou, dobrando e guardando junto com os outros no armário da cozinha, os símbolos em pé lado a lado como sendo uma tropa.
Não esperava sentido.
Nada mais fazia sentido não.
E veio a dor, como vinha sempre depois que comia. Era doença? Ou o governo andava querendo envenenar os velhos aos poucos, como se matava gato?
Sorriu ao se lembrar dos tantos gatos da fazenda.
Chane, chane, chanim…
Esfregou os dedos chamando, chamando, mas quem disse?
Haveria de ter vingado algum, em outro lugar que fosse?
Dona Ceiça já nem percebia a falta, era como se o peito fosse assim um relógio velho, faltando mola, corda. Que andasse pendurado na parede por preguiça de tirarem.
Já não tinha vontade de deixar o sítio, de tentar contato com outros. E se fossem ruins, como foram os poucos que ela espantou à bala?
— Ração condenada, meu Deus — disse, quando a dor lhe apertou às tripas.
Bebeu um pouco mais da água de poço, segura, e pediu que lhe tirassem aquele sofrimento, acalentando-se ao se lembrar da rocinha acanhada, escondida em cima da casa, feita das sementes intocadas, que logo iriam germinar.
Será se antes de acabar a ração?
Perguntou a outra Ceiça, dentro da sua cabeça, uma mais velha e mais doida, que lhe encarava de dentro do espelho, com as tetas murchas.
Tudo veio tão rápido, aconteceu tão agoniado.
E logo não havia mais bichos, abraços, gente.
Dona Ceiça sacudiu os pensamentos como quem vasculha o teto de uma casa.
Pensar já não ajudava.
Preferiu se lembrar dos afazeres.
Da rotina.
Catou a faquinha afiada do quintal e foi pra janela.
Ao longe, já se juntavam, todos eles; se arrastando.
E Dona Ceiça se lembrou do sonho, do marido vivo, dos vizinhos, do bolo na festa de casamento.
Abriu a mão, com a palma marcada de cicatrizes e empurrou a faca afiada, que logo fez brotar um filete vermelho.
Vivo.
Apertou com força, deixando o sangue escorrer.
E como faziam dia sim, dia não, bem dizer, vieram todos, se acotovelar embaixo de sua janela, brigando pelas poucas gotas.
Já nem bicho. Nem gente.
“Ernesto?”, Ceiça sempre pensava em falar, mas com o tempo descobriu como engolir as palavras.
Já não se tinha o que dizer afinal, pensou, enquanto via a poeira do terreiro subir.
Márcio Benjamin Costa Ribeiro é um natalense do Estado do Rio Grande do Norte de 40 anos, que trabalha como advogado, formado pela UFRN, e costuma apresentar-se como um escravo das letras. Autor de romances e livros de contos folclóricos (Maldito Sertão, Fome e Agouro), também já fez muita gente rir com suas peças de teatro (Hippie-Drive, Flores de Plástico, Ultraje). Figura tarimbada em projetos do Sesc (Arte da Palavra, Mostra Sesc de Culturas, Mostra Sesc Cariri, Flipelô), representou o Estado em Feiras Nacionais (Bienal do Livro do Ceará) e Internacionais (Primavera Literária de Paris e Feira do Livro de Paris), tendo sido convidado, inclusive, pelas Universidade de Brown (Providence) e Columbia (Nova York), ambas nos Estados Unidos, para a Primavera Literária de 2020, onde palestrará e apresentará a tradução do seu livro Maldito Sertão para o inglês, chamado “Cursed Badlands”. É roteirista de webséries (Flores de Plástico, Holísticos, Dê seus pulos e Crisinha e Graça) e curtas — metragens (Erva Botão, Linha de Trem e Pela Última Vez), e agora trabalha no roteiro de seu primeiro longa-metragem, Quebrando o gelo. Gosta de pensar que pode escrever pra sempre. Pelo menos é o que prometem as vozes em sua cabeça.