Brasil: (im)possíveis diálogos #10

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

ph neutro

Por Rafa Carvalho

printemps_ficcao
Vitor Rocha

se eu soubesse antes. de onde estaria hoje. talvez tivesse andado diferente.

será que a gente mudaria mesmo o presente se soubesse o futuro. será que cheguei àquela idade de que meus pais e os demais falavam e parecia ser um tempo que jamais chegaria a mim. e o passado se mudasse. mudaria consigo este instante.

talvez. talvez não desse pra chegar aqui por outra via e mudar a via fosse o mesmo que mudar todo o destino. ou vai ver que todos os caminhos levem mesmo pra roma. o problema neste caso é que toda língua tem sua maldição. à minha física corpórea por exemplo a maldição é a ausência do silêncio tantas vezes. e a ausência do beijo. da lambida na pele alheia orelha cangote axila costelas. cristas ilíacas. glandes e clítoris. e cus. foram essas as minhas maldições de língua até aqui. essas e queimá-la todo santo domingo de pressa à lasanha da nonna. quando ainda menino.

mas a maldição da língua portuguesa ou pelo menos uma delas é ser o amor roma ao contrário. assim todos os caminhos de repente nos levassem ao avesso do amor. o seu completo oposto. por isto camões afundou dinamene. é uma língua que desvia. converte as apostas dos poetas.

de fato para amar em roma precisei sair um pouquinho. era uma pasquetta e fomos a um lago. bem nas beiras à cidade. senti a textura da calcinha de benedetta. era como a de muriel muitos anos antes. e não vi a cor mas imaginei madrepérola. enquanto a de muriel num relance das luzes do poste em recorte e viés pelos vidros do carro eram de um laranja meio róseo. um salmão forte exagerando o tom de alguns mamilos e pequenos lábios. algumas pessoas veriam ali qualquer coisa um pouco mais branda de iansã.

rosana tinha uma calcinha verde-limão com uma careta engraçada na bunda. foi tirando essa que tivemos nossa primeira vez. depois as calcinhas na dinamarca se puseram tão diferentes. e a joana me ensinou em lisboa que eram na verdade cuecas.

eu fiz um fado com isso.

e pensando melhor hoje. tive mesmo um fado com calcinhas. sempre desconfiei que fossem mais confortáveis. minhas amigas adolescentes fãs de spice girls diziam que o beckham usava. e me incentivavam a fazer o mesmo claro. o estranho é que tinha já provado os sutiãs e saltos altos de minha mãe. batom. mas uma calcinha nunca.

sempre amei as rendas. sempre amei as cores. as verde-limão inclusive. amava também as lúdicas com caretas e outras gracinhas. a calcinha comestível sabor abacaxi que um amigo trouxe a meu pai do paraguai. lembro que a comemos em família e era como uma sacola de mercado derretendo pela boca. as calcinhas da hello kitty de mimiko. as samba-canções. aquelas que lembravam boxers ou shortinhos muito curtos. seus diferentes tecidos cortes texturas. amei as que existiam para seduzir. e as que seduziam por existir tão confortável corriqueira e não pretensiosamente. as esgarçadas e bege. as de domingo e das férias. a sem costura de sara. a inexistente em aline. aquela da gisela sempre pronta. com zíper.

mais ou menos práticas. algumas caríssimas. e as que vinham das baciadas lá do brás. aliás. lembro que do apartamento por são paulo eu mirava as janelas das áreas de serviço. pequenas lavanderias basculantes de banheiro. observava as roupas dos varais de suas donas. masculinas femininas não importava. imaginando suas personalidades como fossem astros as calcinhas e outras peças marcando mapas no céu arranhado da urbes.

e cheirava as de minhas casas usadas de saudade. e brincava com as esquecidas por ou sem querer nos meus encontros.

mas aí a vida passa. e súbito é ela que vai se esgarçando. perdem-se as cores as formas. texturas. algumas memórias começam por se apagar e já não há mais tempo presente para o memorável. parece um piscar de olhos e estamos já num conto do calvino. onde o mundo do trabalho ou da sobrevivência humana. o mundo exploratório dos mais ricos sempre criminosos molda nossos rostos com as caras mais xoxas dos últimos séculos. roubando-nos todas as piadas e coragens. logo estamos ali. almoçando com pressa. esquecendo que a dança é um ingrediente imprescindível do preparo. comprando comida pronta. deixando de transar depois do almoço em posições leves que se emendem na conchinha de uma sesta digna. tomando o tinto só nos fins de semana pois não há ensejo em dias úteis. nem dinheiro há.

agora penso que não é o casamento que é difícil. mas sim o passar do tempo nele. a resistência insuficiente que oferecemos às opressões de nossa era. e pode ser que seja até muito mais duro aos seus sozinhos inclusive. pois disto eu já não sei.

casar afinal me trouxe todas as calcinhas suas. não são tão diversas quanto o mundo que conheci mas formam o bonito universo de alguém único. infinito em seus limites. num misto de comum e raridade que conforma-nos humanos. e finalmente eu também cheguei com todas as minhas cuecas de uma vez. sendo como sempre fui e agora vejo. muito especial e medíocre. como qualquer um.

muitas das suas calcinhas já se foram. outras que chegaram. e a intimidade só aumenta.

quando acreditava ser poeta eu dizia que só a intimidade poderia salvar o mundo humano. depois entendi que a nossa linguagem é maldita porque não alcança. nunca tange a intimidade. o tempo passa neste conto que por fim não é escrito por calvino senão aos nossos punhos próprios. e leva todas as vantagens. todos os motivos. fica só a vaia em nossas bocas.

é assim. nos vestimos de textos. têxteis. mesmo quando toda poesia impressa fora de um corpo poderia se afogar tranquilamente sem danos reais ao humano. mas nada é de se estranhar pois estamos indo para roma. não para o amor. não é à toa que para nos sentirmos frágeis num esforço inconsciente nós sonhamos que estamos só de calcinha ou cueca nas diversas situações. aliás. eu não sei se pensaria uma aliança melhor de compromisso para além do nosso corpo que essas nossas roupas íntimas.

há uma sina nisso que contudo sempre me acompanhou. a das calcinhas penduradas pelos boxes de banheiro. puxadores da janela. torneiras do chuveiro. desse hábito de lavá-las ali à mão e deixá-las por lá mesmo pra secarem.

eu já achei inútil. um comportamento padrão meio esquisito como as idas conjuntas ao toalete dos lugares. depois achei inteligente prático. reconheci que tantos homens deviam fazer piada disso mas tendo por trás uma mulher que lavava as suas próprias cuecas fedidas marcadas desde sempre. homens que jamais tinham lavado uma única cueca sua. daí dei-me conta que por anos tive as minhas lavadas por uma. e que ainda em outras vezes por outras mulheres em minha história isso também se repetia.

meu devir com as calcinhas assim fez-me ver e viver muitas coisas. transformar outras. aprendi. cheguei a lavar minhas cuecas nalguns banhos embora ainda prefira máquinas e tanques para elas. e quando nasceu nosso filho fiz questão que aquelas fraldas de pano de mijo e de merda fossem lavadas também pelo homem. pai do menino.

no fim eu achava muito lindo aquelas mulheres todas lavando suas calcinhas ao banho. tinha um quê de unidade nelas. um traço ancestral que deixava aquilo um tipo de reza ritual. meditação. vê-las de perto. de dentro. ou pelos vidros embaçados entre as gotículas e o vapor. era a pura poesia. uma beleza uma dignidade. que não caberiam nos homens.

mas nem tudo são flores e eu metódico com vênus marte em virgem sempre me irritei muito com o acúmulo delas nos banheiros em que convivia. não foram poucas as vezes que contei umas quatro cinco secas mais a última molhada formando quase um mostruário no cômodo miúdo. quase um trocador de loja em que a pessoa provou tudo não gostou de nada e foi embora. dava vontade de intervir escrevendo promoção num cartaz. pague três leve cinco. moça bonita não guarda. mas também não leva. a vontade nos apartamentos era jogar pela janela e nesse sentido foi bom estar casado numa casa depois de tudo. um impulso a menos.

é. o tempo passa. o futuro fica uma utopia cada vez mais distante como as viagens e venturas duma aposentadoria que muito provavelmente nunca virão. o passado transmutado nessa espécie de sentença. condenação. e o presente num impasse.

talvez nem calvino nos escreveria assim. século vinte e um. com tudo exagerando nesta pandemia. uma quarentena humana. com o mundo rodando o mesmo. mas distinto.

a correia não diminuiu em nada surpreendentemente ou não. e muitas coisas não mudaram mesmo. as calcinhas acumulando no banheiro por exemplo seguem firmes. mas seria absurdo pensar que tudo ficaria igual. de repente uma miudeza muda. de repente faça toda a diferença. ou então seja logo uma coisa imensa de uma vez. algo elementar a que nossos pais não tivessem conseguido reparar pelo tempo passando deles.

as flores floriram no norte. o ocaso encheu de mágica o sul. desocupamos as praias por decreto. nos empurramos mais às nossas profundezas de improviso. e as tartarugas marinhas voltaram pras beiras das águas antes tão cheias de nós à mesma medida em que opressões terrenas se afastaram um pouco dos nossos antigos vazios. vimos o imperador de cueca por acaso. a roupa nova do rei num desfile que talvez não estivesse programado. e ainda por cima. de vez em quando. há um silêncio.

o almoço foi um requentado de ontem mais uma salada rápida de acelgas. mesmo assim pôde haver dança. não sabemos o que vamos comer no mês que vem se tudo continuar assim mas os dias úteis finais de semana perderam sentido nessa distinção. e temos bebido o vinho de todos os dias. como quem vive. ou morre. feliz.

senti a renda de sua calcinha depois de comermos. e quando a desci era vermelha. nossas línguas físicas se abençoaram em nossos corpos. redimimos a raça humilhamos a língua portuguesa fizemos os anjos e o espírito santo orgulhosos de nós. transamos leves e gostoso pra depois nos juntarmos ao sono meigo do filho. uma sesta digna dos resistentes. na esperança.

já mais tarde. quando fui só tomar banho. topei com a calcinha vermelha ainda sem lavagem pendurada por dentro ao puxador do box. contida contudo das secreções viscosas translúcidas esbranquiçadas. dos corrimentos lubrificações de mulher. e minha porra.

nada me restava a fazer senão pegar um pouco daquele sabão cremoso.

e lavá-la.

Rafa Carvalho é um poeta brasileiro que carrega em seu corpo raízes do mundo inteiro e a poesia como raiz de todas as artes e gêneros literários, como da vida em si. Soma 16 anos de carreira, com trabalhos em arte e educação por mais de 20 países. Integrou o coletivo Poetas del 15 Mayo na Espanha em 2011, tendo parte em sua antologia homônima. É autor de auto-mar (poesia; Editora Patuá) lançado no Brasil e em Angola; e contas de mar (contos; Editora Pontes). Finalista do Prêmio Sesc de Literatura, tem forte atuação social em sua comunidade periférica de origem e por onde esteja. Curador do projeto “papos de versos”, idealizador do Sarau da Dalva, é um forte representante do fundamento antropofágico e cada vez mais considerado por sua capacidade de criar pontes, entre o aparente incompatível.