A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.
A vizinha
Por Rosângela Vieira Rocha

Marlene conhecia a menina desde pequena. Praticamente a viu nascer, quando morou naquele edifício pela primeira vez. Depois se mudou, alugou para outra pessoa, passou anos em outra cidade, mas acabou retornando.
Liliane já era adolescente e surpreendentemente mal-educada. Discutia alto com a mãe, xingando-a de vaca, além de arrastar móveis de madrugada, ouvir música até tarde, bater portas, andar de sapatos de saltos altos no piso de cerâmica antes das sete da manhã, correr pelo apartamento chorando, quando estava irritada. Como morava no andar de baixo e cuidando da própria mãe com Alzheimer, Marlene vivia cansada. Resolveu mandar fazer isolamento acústico em dois cômodos: no quarto de dormir e no que usava como escritório. A firma encarregada do serviço foi taxativa: o ruído diminuiria apenas uns 60%, pois esse tipo de providência deve ser tomado na construção do edifício ou feito no piso do apartamento de cima. No teto, o efeito é significativamente menor. O teto foi rebaixado e o espaço, preenchido com caixas de isopor, mantas de proteção e borrachas sintéticas. O apartamento teve de receber nova pintura e, no final, foi um rombo no seu orçamento.
Tanto a mãe quanto a filha não gostavam de Marlene, embora ela não soubesse o motivo. Era tratada com frieza e até mesmo desconfiança, quando se encontravam no elevador. Mesmo depois do isolamento acústico, ela teve de fazer reclamações, pedir a intervenção do síndico, mas tudo em vão. Não havia confrontos; tampouco soluções.
Além de cuidar da mãe — supervisionando o trabalho das cuidadoras, entre outras tarefas —, tinha horários rígidos no banco onde trabalhava e contava os dias para a aposentadoria, que ainda demoraria.
Certa manhã, quando foi abrir a porta do carro, ao pegar na maçaneta, sujou as mãos com um líquido vermelho e levou susto, achando que era sangue. Voltou ao apartamento para lavá-las e então percebeu que se tratava de ketchup. Pegou um pano, limpou cuidadosamente o local e foi para o trabalho, atrasada quinze minutos. O chefe lhe lançou um olhar gelado, quando a viu, como se dissesse atrasada de novo, dona Marlene?
Intuía que só podia ser obra das vizinhas, talvez da jovem, mas não havia provas. Como o prédio não tinha garagem, passou a procurar vagas cada vez mais longe, até em edifícios próximos, fugindo da estranha sanha.
Meses depois, certa noite, só conseguiu estacionar exatamente embaixo do apartamento. Quase vomitou quando viu o ovo recém-quebrado no capô do automóvel, com a gema escorrendo sobre o para-brisa, na hora exata de levar a mãe ao médico. O porteiro se prontificou a limpar rapidamente a sujeira e as duas conseguiram chegar a tempo.
Daquela vez, não se conteve e procurou o síndico. Tudo indicava que o ovo teria sido jogado da área de serviço do apartamento 801, disse. Ninguém viu, mas o síndico, zeloso, bateu de porta em porta, pedindo mais educação aos moradores. O responsável não apareceu, como era de se esperar.
Todos naquela entrada conheciam o capricho de Marlene. Apaixonada por decoração, possuía móveis bonitos, miniaturas de cristal, pratinhos de porcelana, tapetes orientais — embora os tivesse guardado depois da doença da mãe, com medo de que tropeçasse. As janelas eram limpas todas as semanas pela diarista e reluziam.
Numa tarde, voltando do trabalho, sua ajudante avisou-a de que havia um tipo de sujeira diferente nas janelas, que não saía de modo algum, por mais que se esforçasse. As duas examinaram detidamente os vidros e concluíram que se tratava de uma mistura de cinza de cigarro com algum tipo de cola. Como as janelas abriam para a frente — não eram de correr — os vidros eram alvos perfeitos para receber a sujeira jogada de cima. Esses episódios se repetiram por anos. Paciente, a diarista chegou a usar inclusive água rás, mas as janelas nunca mais voltaram a ser limpíssimas como antes. Sempre havia um restinho, um respingo, uma gota a empanar o senso estético e o gosto de Marlene pela limpeza.
Quando sua mãe faleceu, ela anunciou a venda do carro, pois pretendia fazer uma longa viagem. Queria visitar primas que moravam no litoral, tomar banhos de mar, distrair-se um pouco, aproveitando a licença a que tinha direito e um período de férias. A vizinha lhe pediu prioridade e lhe ofereceu um valor justo pelo veículo. Fecharam a venda; tudo parecia correr bem.
Durante alguns anos, mãe e filha a trataram de maneira civilizada, quase cordial. Cautelosa, Marlene não se aproximou muito, mas acreditou que o fato de utilizarem o carro que havia lhe pertencido representava um acordo de paz, uma espécie de bandeira branca. Foi um alívio, pois tudo que queria era viver em paz e não arrumar arengas com a vizinhança.
Depois veio o ano dos panelaços contra Dilma e ela nunca viu nenhuma manifestação das vizinhas, enquanto outros moradores quase lhe furaram os tímpanos, com a barulhada. Marlene votou na ex-presidente, sempre achou que houve golpe, mas se manteve quieta durante as manifestações.
Às vezes perguntava a si mesma o motivo da rejeição de mãe e filha. Nunca lhes fizera nada de mal e por isso não conseguia entender. Mas, pensando no passado, lembrou-se da existência de episódios do mesmo tipo, inclusive do bullying de que foi vítima na escola fundamental, por causa de suas notas altas. Coisas da vida, pensava. No mundo, há casos incompreensíveis, tudo pode ocorrer.
Eleito o novo presidente, de quem Marlene nunca gostou, chegou o dia do início dos panelaços contra ele. Indignada com a vergonhosa gestão, Marlene não suportava a figura e resolveu, pela primeira vez na vida, pegar sua panela. Munida de colher de pau, foi para a janela da sala. O barulho, bem mais discreto que o do passado, quase foi abafado pelo vizinho do lado, que tocou o hino nacional na clarineta. Irritada, ousou até gritar: Lula, Lula, viva o Lula!
Quando voltou ao quarto usado como escritório, onde passava a maior parte das horas quando estava em casa, reparou que nas janelas havia respingos de cinza misturados com cola, aquela mesma gosma nojenta que tanto a incomodou em outros tempos. Agora seria pior, pois dispensou temporariamente a diarista, embora continue a depositar o valor dos serviços. Teve de aderir à quarentena imposta para evitar a transmissão da Covid-19, uma doença transmitida por um vírus que está matando milhares de pessoas no mundo inteiro. Então, entendeu: era o preço pago por bater panelas contra o presidente. As vizinhas deviam ser suas fãs incondicionais. O frágil equilíbrio pelo qual tanto lutara, tentando se conter e suportando as ofensas calada, sempre visando a harmonia e a paz, se rompera.
Indignada, Marlene pensou em reclamar, mas foi tomada pela mesma impotência de antes. Iriam negar, é claro. E talvez acrescentar que ela via coisas inexistentes, que ficou muito solitária depois da morte da mãe, esses argumentos pseudopsicológicos que as pessoas miúdas, inseguras e mesquinhas usam para projetar o seu lado sombrio e malévolo sobre as outras, feitas de bodes expiatórios. Gentinha — termo muito antigo, usado por sua avó, um tanto preconceituoso, mas aplicável ao caso — nunca assume nada. Distorce a realidade, age às escuras, fazendo caras e bocas e passando por santinha. Do pau oco, óbvio. Recusa-se a ver sua própria imagem no espelho. A covardia é a sua principal característica.
Nas crises, tanto políticas quanto sanitárias, demônios internos de toda ordem parecem vir à tona. Tanto o ódio disseminado por políticos irresponsáveis quanto as desigualdades — sociais, econômicas, educacionais e culturais — são terrenos férteis para a prática das grandes e pequenas maldades.
Rosângela Vieira Rocha nasceu em Inhapim, MG. Tem treze obras publicadas, seis para adultos (cinco romances e um livro de contos) e sete infantojuvenis. Recebeu vários prêmios literários, como o Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG-1988, com o romance Véspera de lua, e a Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, com a novela Rio das pedras. Publicou o romance O indizível sentido do amor (Editora Patuá, 2017) e Nenhum espelho reflete seu rosto (Editora Arribaçã, 2019). Participou de diversas coletâneas de contos. É Mestre em Comunicação, escritora, advogada, jornalista e professora aposentada da FAC/UnB. Colunista da revista digital literária Germina, já participou de várias comissões julgadoras de concursos literários.