Brasil: (im)possíveis diálogos #6

A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.

Bem-aventurados os que choram II

Por Paulo Dutra

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Vitor Rocha

Bem-aventurados os que choram. Deus, em sua infinita sabedoria, deixou, por meio dos evangelistas que discorreram sobre o assunto, no famoso sermão da montanha, sentença de suma importância. Tudo isso pensava diariamente Didico, no trajeto Caxias-Fundão, já se vão uns dez ou vinte anos. Bem-aventurados os que choram porque eles serão consolados nunca chegou a ser a bem-aventurança favorita na época da escola bíblica; sempre gostou mais do bem-aventurados os puros de coração porque eles verão a Deus, sem saber ao certo o porquê. Primeiro foram os textos sagrados, depois os seculares, mas sempre nos textos buscou respostas para os questionamentos que “Chico o herói” preferia não perquirir. Do Gênesis ao Apocalipse. Das bulas papais aos tratados de São Tomás de Aquino. De Ellen G. White ao Livro de Mórmon. Do Conde Lucanor à Conceição Evaristo. Do Facundo a Boquitas Pintadas. Filosofia que não fosse antiga e grega só por intermédio e filtro cultural de cor local de Machado de Assis, Kafka, Rosario Castellanos, Cervantes, pra não perder tempo valioso com bobagens de puxa-sacos. Ainda assim, nada, inútil a filosofia pseudo-universal branca e grega. Bem-aventurados os que choram porque eles serão consolados. Didico pensava. O maior mistério de todos. Há quem diga que o maior mistério é como diabos Noé aguentou tanto bicho dentro da arca, porque o porquê de eles não terem devorado uns aos outros o padre Antônio Vieira já explicou. Há os que dizem que o maior mistério é de onde saíram as mulheres de Caim e Abel. Para outros o maior de todos os mistérios é como um camelo passa por uma agulha (e há ainda os que acreditam que o maior mistério é quem matou a praga da Odete Roitman). E, aqui, soma-se o mistério contemporâneo de onde está um fulano que rima com nós, “mais não é nois, táligado?”. Todos mistérios para os quais há respostas fáceis, e elaboradas também. Basta ir na casa desse povo que tem 20 gatos dentro de casa por exemplo ou na casa de um fumante para descobrir que há explicações científicas para o mistério de Noé; e porque quase ninguém quis entrar na Arca. Concluía Didico. Isso pra não falar dos milagres porque já estaríamos entrando em outro problema. Afinal de contas, quando descobriu que Machado não era branco, Harold Bloom disse que ele era um milagre. Carlos Fuentes também disse isso, mas não sei se sabia ou não que Machado não era branco. Milagre? Tá certo, tá certo, tá certo. Branco escritor é obra da natureza, preto escritor é milagre. De chorar. Didico divagava. Cada um desses mistérios já tinha sido mistério e deixado de ser alguma vez na cabeça de Didico. Assim como a dúvida se Vida Boheme voltou em casa ou não afinal. “Bem-aventurados os que choram porque eles serão consolados”, porém era mistério indecifrável. E não é porque há causa e efeito na sentença, mas sim pelo simples fato de que, ora bolas, se choram é para serem consolados e se serão consolados é porque choram. Didico não chorava. Não é que não tivesse chorado nunca, mas fazia já uns 10 ou 20 anos que não chorava. Devia ter chorado quando nasceu já que é o que todo mundo diz. Pra mamar não deve ter chorado porque a mãe dizia que nunca gostou de leite. Como nada disso adiantava, dedicou-se então a lembrar das vezes que chorou. Do físico ao emocional. Da causa negativa à causa positiva. Esforçou-se para lembrar. Um corte no pé, um soco no olho, um soco na boca do estômago, um arranhão no joelho, um chute no saco de vez em quando, uma pirraça aqui, uma chinelada ali, uma mordida de cachorro, uma bola de couro de presente, um Atari, uma piada bem contada, uma “bezetacil”, a primeira dura da PM, a última dura da Civil. Chegou à conclusão de que chorou muito na vida. De dor, de raiva, de tristeza, de alegria, de tanto rir, de fome, de gulodice, de remorso, de compaixão, de mentirinha, de solidão, de vergonha (naquela vez que não quis comer no prato de lata de goiabada), de acanhamento (daquela vez que comeu no prato de lata de goiabada), de medo, de saudade, de se mijar todo, de desespero, de dor de cotovelo, de soluçar, de molhar as páginas do conto que reescrevia. Finda a tarefa de lembrar não somente as vezes que tinha chorado como também as forças motrizes por trás de cada uma delas, restava apenas repetir uma por uma cada situação. Método científico, aceito pela comunidade internacional (ou seja: o que a empreitada colonial estabeleceu), mais óbvio para chegar a uma conclusão. Começou pela física. Infligiu-se um corte no pé encima da cicatriz original. Um corte que não havia doído e por isso quando apercebeu-se da quantidade de sangue desabou em choro convulsivo. Com o caco de vidro ainda fincado no pé viu o rio de sangue aumentar a poça ao redor do pé. Nada. Nem uma lágrima sequer. Nem na hora da anestesia para a sutura necessária. Curado o ferimento, continuou científica e sistematicamente esgotando a lista. Numa briga de trânsito, provocada, obviamente, eliminou da lista o soco no olho, o soco no estômago e o chute no saco de uma só vez, além de uma costela quebrada que veio de brinde. Nada. Nem uma lágrima sequer. Eliminadas as causas físicas passou às emocionais. Entre as coisas que já tinham provocado o choro proveniente de sentimento de raiva, cogitou uma final de campeonato em que o Flamengo perdesse por burrice do treinador mas isso implicaria esperar por um evento sobre o qual não teria nenhum controle e que, além do mais, já tinha testado mesmo que involuntariamente, portanto descartou a ideia. Como uzHômi hoje em dia anda de fuzil e circula “na rua com uma descrição que é parecida com a sua cabelo cor ou feição” (e idade, interseccionalidade! vejam só!), pulou essa parte e resolveu então praticar a subida de elevador na zona sul do Rio de Janeiro, não sem antes reler o “Fala, Fera”. Por uma semana, três vezes ao dia, tentava subir nos elevadores sociais de Copacabana e o resultado sempre era a insistência do porteiro em que usasse o elevador de serviço e raiva profunda que dele se apossava. Nada. Nenhuma lágrima sequer. Lembrou do personagem do Rubem Fonseca que via televisão para aumentar a raiva (ou era o ódio?), mas preferia desistir da empreitada a submeter-se à tamanha tortura; fazia já uns 5 ou 10 anos que tinha se livrado do vicio da televisão. Como solução, passou então a ler crítica literária para aumentar a raiva. Leu e leu o máximo que pôde as bajulações hiperbatônicas de praxe aos textos ficcionais, escritas por homens brancos na faixa etária de 30 a 55 anos, e publicadas no eixo Rio-São Paulo, que formam o grosso da tão nobre disciplina. Náusea imensa, mas nenhuma lágrima sequer. Matou uma cambaxirra com uma pedrada certeira, matou outra com requintes de crueldade, e, para quem já fazia uns 10 ou 15 anos que literalmente não matava nem insetos (pegava com uma folhinha de papel e colocava pra fora do recinto) o remorso foi colossal. Nada. Nenhuma lágrima sequer. Isolou-se de tudo e de todos e a saudade doeu, virou desespero. Fez greve de fome. Comeu arroz com feijão e usou lata de goiabada como prato na calçada do copo-sujo na central do Brasil. Ganhou um concurso de quem comia mais cachorro quente depois de reler O Rapto do Menino Dourado, a indigestão foi quase fatal. Nada. Nenhuma lágrima. Viu e reviu os shows do Richard Pryor riu e rerriu e gargalhou. Nada. Nenhuma lágrima sequer. Terminadas todas as possibilidades da lista voltou aos textos, não sem antes reescrever aquele conto mais uma vez. Nada. Revistou textos antigos e contemporâneos. Releu o Dom Quixote e a frustração de que até Amadis de Gaula tinha fama de chorão criou uma sensação inexplicável. Releu Insubmissas Lágrimas de Mulheres. Leu pela primeira vez uma tradução de “Boquinha” que encontrou por acaso (será que ele chorou depois da coça que levou da coroa?). Releu “Diante da lei” e depois O processo todo de novo e depois María, com toda aquela agonia que se sente. Releu as últimas páginas de enquanto os dentes. Nada. Nenhuma lágrima sequer. Releu o capítulo “Das negativas” e lembrou que também não alcançou celebridade com aquele conto, não foi ministro, nem califa. Nessa busca textual por uma resposta ao grande mistério foi que, nos vais e vens entre textos antigos e contemporâneos, tropeçou em Sor Juana. Por que diabos só se lê a “Respuesta” nas aulas e nunca os textos que deram origem ao acontecido? Manuel Bandeira tinha feito um comentário sobre a tal “Carta Atenagórica” mas isso não importa para a crítica literária e, como, não acrescenta nada de emoção ao conto, melhor deixar pra lá. Deu graças a Deus pelo padre Antônio Vieira, pelo barroco e pela existência do silogismo. E foi então, não sem antes usar o método de Pierre Menard para entender Sor Juana (aprender o espanhol do século 16, aprender a fé católica etc, reler Quevedo (meus deus que cara arrogante), Góngora, e o padre Antônio Vieira (meu deus que sujeito marrento), que se dedicou novamente à prática para desvendar o mistério. Deu graças a Deus por Sor Juana comprovar, enquanto destrinchava os silogismos do marrento Padre Antônio Vieira e destroçava seu argumento, que a dor que dá lugar ao pranto é menor, enquanto que a maior de todas embarga o pranto. Descoberta a consequência, faltava descobrir a causa. Dedicou-se então a desvendar o segredo de qual seria essa dor maior. A dor que suplantava a todas as demais. Como não tinha estômago nem pra psicanálise nem pra psicologia, nem cogitou procurar nessas disciplinas respostas, afinal das contas Fanon nunca foi bem recebido, na verdade, nem recebido, pelos cândidos defensores da “universalidade”. Já sabia que acharia um universalizante trauma de infância de gente branca como possível causa, bla bla bla. Dias e dias examinou a memória e a consciência em busca da solução. Mas a consciência e a memória vinham dos livros e da escola bíblica. Voltou aos livros e à bíblia. E não porque quizesse acrescentar um versículo ao evangelho. Tinha horror à formulas gastas e, afinal de contas, o bem-aventurados os que não descem sempre pareceu caô de defunto beijoqueiro. Bem-aventurados os que não descem … pode até ser … sei lá … mas e os que descem? Os que não descem ficam lá em cima e, portanto, Bem-aventurados os que sim descem porque deles são as areias da praia de Copacabana nos dias de real grandeza tudo azul o mar turquesa a la Istambul enchendo os olhos dos que não descem. Leu e releu. Leu e releu. Lia e relia obstinadamente e já não fazia outra coisa. E não é que Hermes fosse culpado não. E não é que Hermes fosse culpado não, afinal de contas o coitado do Hermes não tem culpa se a hermenêutica foi universalizada apesar de insuficiente e limitada (e aqui sou eu que tô dizendo, não é o Didico não, “quem é preto como eu já tá ligado qual é”, mas talvez seja melhor explicar para quem é preto, mas não como eu: Hermes não conhecia Esu), Hermes não conhecia Esu… , Hermes não conhecia Esu… nem eu naquela época, pensava Didico. Como na leitura não achava resposta, decidiu voltar a reescrever aquele conto enquanto continuava sua agora incansável Esu‐’tufunaalo para interpretar o mistério. Decidiu voltar a reescrever aquele conto, mas começou a se arrepender porque lembrou que o senão de um conto, o maior defeito dele é você leitor, é você leitora. Você ama a narração aprumada e nutrida de símbolos positivos da negritude e referências aos orixás bem explícitos, o estilo regular e fluente da estrutura do conto tradicional-moderno (inventada pelo Edgar Alan Poe ou pelo Horácio Quiroga, diga-se de passagem), o despertar de emoções à flor da pele, e, ainda por cima (mais costume que amor), infestada de pretéritos-mais-que-perfeitos simples e pronomes oblíquos átonos nunca presentes nas bocas de ninguém a não ser (inconscientemente) na dos narradores e narradoras dos autores e das autoras que, por ganharem o prêmio Jabuti (ou vice-versa), são (inconscientemente) reproduzidos em qualquer literatura, independente(mente) da cor, e, claro, na daquele narrador (tá lá um corpo estendido no chão) de futebol da TVE; e este conto e o meu estilo são como os temulentos, guinam à destra e à sinistra, caminham e empacam, murmuram, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e desabam… se estabacam! E não é que eu “quero chorar! Não tenho lágrimas…” como naquele samba. Eu tenho. E te daria uma lágrima, talvez assim você achasse emoção no conto e chorasse comigo no final. Didico se emocionava e se animava com a ideia de chorarmos todos e todas, juntos, no final. Crescia nele uma expectativa e pensava no insólito dessa técnica narrativa que faz com que em vez de o narrador manipular o personagem e ação para criar expectativa na leitora e no leitor é o leitor e a leitora que criavam no personagem a expectativa de chorarmos todos e todas, juntos, no final. Lembrou daquela parada que o professor Jorge falou no boteco aquela vez. Fora da sala de aula o professor Jorge era Jorge Makumba e botava a mão na boca com o indicador estirado ao lado do nariz e dizia “ô rapá! É o seguinte: navio negreiro não dá ré não aí”. Mas lembrou que isso foi a mó tempão.

— Há um tempão!
— É… isso mesmo que eu disse! Foi a muito tempo.
— Há!
— Não é isso que tô dizendo?
— Não. Você disse a um tempão.
— Então! Foi a muito tempo!
— Foi Há Muito Tempo!
— O que que eu disse?
— Que foi a muito tempo.
— E qual o problema? Não foi a mó tempão, não?
— Não é foi a muito tempo, é foi há muito tempo. E é vício, não vicio.
— Que? Cumé?
— É VÍCIO! Não vicio! É quisesse, não quizesse! E é a fórmulas não à formulas!
— Iá! Ô bichão! Traz a conta aqui!

Foi nisso que o Buiu passou batendo um samba antigo na caixinha de fósforo “a minha alegria atravessou o mar… levei o meu samba pra mãe-de-santo rezar contra o mal olhado carrego meu patuá”. Assim, de repente, “a minha alegria atravessou o mar”, que uma fagulha acendeu lá dentro, “a minha alegria”, e apagou, “o mar”, toda a memória e a consciência, “é hoje o dia da alegria e a tristeza nem pode pensar em chegar”, e finalmente, num reboot, numa (re)tomada de consciência (e nem foi como a Rigoberta Menchú não) gritou Ttufunaalo!!!!! e entendeu o mistério das lágrimas que não se manifestam e aqueles versos “cabe em um olho e pesa uma tonelada”. No mesmo dia abriu uma janela em direção ao leste e desde esse dia em diante nunca mais leu nem escreveu. De dia sentava no tamborete na encruzilhada, de noite sentava no parapeito da janela. Mudou de nome, não no R.G., claro. Contemplava o horizonte por longas horas e escutava, escutava, escutava, escutava até achar que escutava algo mesmo e que eram histórias e histórias e histórias muitas histórias todas as histórias em línguas tão bonitas tão bonitas já contadas e depois roubadas contrabandeadas e patenteadas em outras épocas e paralelos… então os olhos marejavam e marejavam e marejavam. Mas, nada, nenhuma lágrima sequer se aventurava a deixar o berço, a fazer a travessia. Elas ficaram do lado de lá. Este era seu B.O. pra eternidade: ficar ali sentado dia-e-noite ou levantar e ir ao encontro das lágrimas.

Paulo Dutra, fluminense de São João de Meriti, é doutor em literatura latino-americana, Purdue University (EUA), e assistant professor na University of New Mexico (EUA). É autor do livro de contos Aversão oficial: resumida (Malê, 2018) e do livro de poemas abliterações (Malê, 2019). Instagram: poetapaulodutra.