A gueto publica entre março e junho textos de ficção e de não ficção dos autores convidados da Printemps Littéraire Brésilien a partir do tema norteador deste ano: Brasil: (im)possíveis diálogos. Os textos vão ao ar primeiro individualmente aqui no portal e depois serão reunidos em e-book (orgs. Leonardo Tonus e Christiane Angelotti) para download gratuito.
As reinvenções de si e a vulnerabilidade como resistência
Por Raimundo Neto

O medo ensinou-me muito sobre mim. Não havia uma dinâmica de perversidade na casa em que nasci, sempre prestes a cair e a ensinar a todas as mulheres e poucos homens que o amor era capaz de arrancar pedaços. Existia um aprendizado de que os sacrifícios e os eternos papéis parentais/filiais eram imutáveis, e que todo amor devia prender, sufocar, desgastar e depois morrer. Parecia-me que o amor era uma porta sempre fechada, e dentro, um lugar escuro e apavorante.
Nasci numa cidade rural do interior do Piauí. Batalha. Eu e alguns dos meus amigos crescemos no armário. Ou fomos empurrados para lá. As cenas de berros de “viado”, bicha, puta, mulherzinha, baitola, foram persistentes ao longo da nossa infância. As escolas que frequentamos foram os espaços mais cruéis. Não entendíamos o que tornava os meninos/jovens/homens incontroláveis em suas raivas, aqueles olhos famintos, aquelas mãos duras, aqueles gritos estridentes.
Nosso corpo tinha gestos desconhecidos para nós. Só começamos a perceber muito tarde que aqueles gritos/risadas/berros chegavam de fora também porque éramos bichas no Piauí. A bicha era tudo que um homem masculino-macho jamais seria. Uma bicha era/é um corpo tipo como promíscuo, sujo, vil, que corrompe, seduz; pernicioso. A experiência da bicha começa(va) e termina(va) no abjeto, até morrer, até hoje.
Éramos crianças. Não fazia sentido os gritos, as risadas dos outros sobre nós. Eles diziam algo sobre nós que era incompreensível. As injúrias começavam na escola, percorriam reproduzidas pela vizinhança, circulavam em casa, e voltavam para nós, aterrorizadas. Tudo o que não entendíamos sobre nós, em algum momento, autorizou jovens homens mais velhos a, além dos gritos, a usarem nosso corpo para algo que, neles, pelo que diziam, era incontrolável. Foi o período da vida em que nós, crianças, bichas, fomos mastigados, tocados, virados ao avesso, sangrados, expostos, pelas mãos, língua, e tudo mais que aqueles homens tinham em seu domínio. E eles contavam isso para outros jovens homens mais velhos. Isso só parou quando alguns de nós trancaram-se em casa, no armário. O que chegava a ser ridículo. Era impossível escapar do que éramos.
No meu caso, minha mãe sabia de algo. Acho que por isso gritava tanto “Fala como homem, caminha como homem, seja homem”. Dos treze aos vinte e dois anos, isso tudo continuou em outras escalas e aspectos. As piadas tornaram-se mais amplas. As mãos ainda vinham de meninos mais velhos que eu, e depois as injúrias circulavam nas rodas de conversas/fofocas, sobre a bicha que tirava as melhores notas na escola, mas que era bicha.
Aos vinte anos eu sabia que queria ir para longe, ou simplesmente sumir. Tentei morrer duas vezes. Para ir embora eu precisaria aprender a contar outra história sobre a minha vida; eu precisaria que as narrativas sobre mim fossem escritas por mim. Mas como se escreve sobre si e sobre o mundo com medo? Eu achava, mesmo, que era preciso apenas coragem, integral e permanente, para escrever-me.
Enquanto vivi na casa do meu nascimento, o medo era de que alguém me arrancasse do armário, o lugar onde supostamente eu estava seguro. Mas, se era esconderijo, por que todas as pessoas diziam aspectos graves sobre mim que eu desconhecia? Afeminado, veado, molenga, maricas, putinha, frouxo, bicha, bicha, bicha, bicha.
Eu tinha medo que tudo caísse, que todas as pessoas da minha casa morressem, as mulheres que me nasceram. De Batalha a Teresina, meu caminho foi entre injúrias e os cuidados maternos. Uma mãe preocupada e afetiva, e que se incomodava com aquele filho que jamais seria o homem que disseram que ela deveria esperar; porque também esperavam muito daquela mãe como mulher. O discurso das casas vizinhas à nossa, da igreja, da escola, esperava muito de mim e da minha mãe.
As experiências que meus desejos provaram foram me levando para além do corpo. Pessoal e profissionalmente. Eu começava a entender que família não era apenas a ideia mantida e sustentada por muitas instituições, definindo e organizando corpos, desejos, sexualidades e identidades; que dentro daquele espaço familiar acontecem muitas violências, provocando tantos medos; que o amor não brotava com naturalidade como se houvesse uma essência registrada nos genes. Havia algo muito mais complexo. Havia outros tipos de relações e afetos, construídos, elaborados, sobrevivendo para além das naturalizações e essencializações de mãe/pai/filhos/filhas/homem/mulher.
Nesses caminhos, eu não largava a Literatura. Descobri primeiro um refúgio, depois entendi que podia ser uma saída. Eu me escondia nas bibliotecas que fui descobrindo. Foram os únicos lugares em que me senti protegido. Todas aquelas narrativas, todas aquelas palavras. Depois Guimarães Rosa, Mario Faustino, Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector, João Gilberto Noll, Cassandra Rios, Michael Cunningham, Hilda Hilst, Virginia Woolf, Oscar Wilde, João Silvero Trevisan, James Baldwin. Ao ler todos aqueles corpos e afetos, que eu nunca tinha lido antes, senti alívio, alegria, desespero, angústia; senti que era possível seguir sem morrer sempre um pouco mais.
Depois, muito depois, fui pelos caminhos da escrita. Inventei pessoas e futuros. Havia medo em todas aquelas histórias. Eu escrevia invenções sobre mim e, só muito depois, entendi que era sobre outros também. Foi assim que Literatura, memória, vivências e escrita, cruzaram-se diante e dentro de mim, encontrando meus medos. E assim comecei a perceber que, de algum modo, eu não escrevia sozinho. Havia todas as memórias, as minhas e as das minhas amigas, nossas histórias que se cruzaram; havia as casas que caíram e as famílias tornadas ruínas; havia muitos gritos e pedidos de pessoas antes de nós, especialmente as bichas e corpos abjetos invisibilizados. Havia todas as histórias de medo que nos antecederam. E essa mesma escrita do medo proporcionava encontros, quando pessoas desconhecidas se reconheciam naqueles medos.
Entendi muito mais tarde que voltar para o armário era impossível, e também um ato político, como bicha que conquistou alguns privilégios. Voltar para o armário seria me ocultar, e isso reproduziria um princípio heteronormativo de gestão de subjetividades, corpos e desejos.
Em São Paulo, algumas injúrias e violências ocorreram. Eu sentia esse medo me acompanhando, e acompanhando pessoas próximas a mim. Comecei a refletir que o medo também foi um dos caminhos para as minhas lembranças.
Do armário onde vivi durante anos, até a saída da porta da minha primeira casa, depois chegar a São Paulo e suas diversidades, foi um caminho longo; construir uma linguagem contada pelos sentidos daqueles Brasis que eu vivia e também pelo corpo-bicha escapando das normas foi um dos modos de ser político e resistência. Foi inicialmente um processo um tanto intuitivo de investigar escrita, identidade, memória e afetos.
Quando me aproximei das leituras de Didier Eribon, Butler, Orham Pamuk, Foucault, Silviano Santiago, Elvira Vigna, Nicole Krauss, James Baldwin, Toni Morrison, comecei a refletir sobre identidade, escrita e literatura:
1. “A injúria não é apenas uma fala que descreve. Ela não se contenta em me anunciar o que sou. Se alguém me xinga de ‘viado nojento’ (ou negro nojento ou judeu nojento), ou até simplesmente de viado, ele não procura me comunicar uma informação sobre mim mesmo. Aquele que lança a injúria me faz saber que tem domínio sobre mim, que estou em poder dele. E esse poder é primeiramente o de me ferir. De marcar a minha consciência com essa ferida ao inscrever a vergonha no mais fundo da minha mente. Essa consciência ferida, envergonhada de si mesma, torna-se um elemento constitutivo da minha personalidade. A injúria me diz o que sou na medida em que me faz ser o que sou.” Para Eribon, um dos princípios estruturantes das subjetividades gays e lésbicas consistiria em procurar os meios de fugir da injúria e da violência, que isso costuma passar pela dissimulação de si mesmo ou pela emigração para lugares mais clementes.
2. O resultado das últimas eleições revelou (revelou para quem?) os conservadorismos e violências sempre presentes. Ou talvez pessoas privilegiadas em suas vivências cis, masculinas, brancas, hetenormativas, sudestinas, tenham percebido com outros olhos e ouvidos tudo que era feito e dito sobre gays, lésbicas, homens e mulheres trans, travestis, negros, mulheres cis, índias e índios, por exemplo. Mas se noticiou aparentemente mais casos de violências especialmente contra pessoas LGBTQIA. Brasil, o país que mais mata LGBTs no mundo, provavelmente continuaria liderando esse ranking, infelizmente.
Refletindo sobre ideias de Orham Pamuk e Nicole Krauss, concordo que um romance é uma segunda vida, e que quando se escreve um romance descobre coisas sobre si mesmo que eram desconhecidas. Para Nicole Krauss, precisamos ter algo a dizer sobre quem somos, e também por isso estamos escrevendo o tempo todo sobre o fardo das nossas heranças, o que nos disseram/contaram sobre nós; propondo a ideia da escrita como ficção do Eu, quando assumimos também reescrever quem somos, e contar as narrativas sobre nós de outro modo: contar a história sobre nós do nosso ponto de vista.
3. Ouvi a escritora Elvira Vigna falar sobre seu processo de escrita uma vez, pessoalmente. E acompanhei tudo que foi publicado, e também tudo que foi dito por ela sobre os seus processos de escrita em entrevistas e vídeos. Ao ser questionada sobre literatura e escrita, ela dissera, entre outros detalhes, que só escrevia o que lhe batia muito forte, o que a fazia doer: “Eu exijo de mim uma presença emocional brutal, porque senão não serve. Se eu quero chegar ao outro, eu tenho que me apresentar como apta emocionalmente a chegar perto desse outro. Escrever é um troço duríssimo, te modifica. O que eu busco é o humano. Para mim, Literatura é uma forma de você de dividir, compartilhar experiências humanas.”
Partindo disso e do medo das violências, das injúrias como produtoras/definidoras de subjetividades (particulares e coletivas, resguardadas as devidas interseccionalidades), das memórias de infância, vivências e marcas, das possibilidades de assumir as narrativas sobre o Eu e (reinventar-se) e esse devir e potência, e da escrita e literatura como uma forma de proporcionar encontros, iniciei esse caminho do que também poderia chamar de investigação e produção de algum tipo de linha de fuga, por assim dizer. Embora o começo disso tudo tenha sido intuitivo, só muito depois se tornou algo mais consciente e elaborado.
Assim, se a linguagem inventa mundos, faz sentido dizer que escrever sobre corpos, identidades, sexualidades divergentes das normas vigentes, sobre deslocamentos e diferenças, é possibilitar que outras pessoas se aproximem dessas vidas tão diversas e que durante muitos anos estiveram escondidas e silenciadas, o que possibilitou criar as linguagens e narrativas das personagens que escrevi numa casa/família desmoronando, aprendendo o amor pelo sacrifício e violência, um filho “bicha” que tenta escapar; a linguagem das personagens tentam inventar-se para além do que a norma diz que são. As personagens estão também inventando outras casas, outras famílias e afetos: Todo esse amor que inventamos para nós.
De algum modo, comecei a refletir que a escrita e essa Literatura poderiam ser também processos de investigação, em que as vozes contando as narrativas começavam a se contar na minha história, e por isso a marca autobiográfica (mas talvez não confessional). Deborah Levi me ajudou a pensar um pouco sobre isso com seu ensaio “Coisas que não quero saber”, quando disse que quando uma escritora leva uma personagem para o centro de sua investigação literária (…) “e essa personagem começa a projetar sombra e luz por toda parte, ela precisa encontrar uma linguagem em parte relacionada ao aprendizado de como se tornar um sujeito e não uma ilusão, e em parte relacionada ao desenlace de como ela mesma foi construída pelo sistema social, antes de tudo.”
Contar ficções buscando quais personagens contarão aquelas narrativas é pensar também as reinvenções que somos, e pensar como fomos construídos socialmente, que sistemas criaram normas reguladoras de famílias e corpos, produzindo “anormalidades”, dissonâncias, violências, e muito medo.
Considero, portanto, que escrever sobre o medo é narrar diferenças e reinvenções de si, é contar o caminho do armário até o cosmopolitismo aparentemente dissidente de uma cidade grande, é construir narrativas em que as personagens contam-se diversas, portas abertas, inventando outros afetos, escritos ou não por pessoas que se identificam a partir dessas dissidências. Escrever sob o medo é também promover encontros, resgatar humanidades, que é uma das muitas possibilidades da Literatura e da escrita; promover encontros entre diferenças, entre pessoas, e que esses encontros possibilitem outras descobertas e outros caminhos.
Escrever, mesmo com medo, como a possibilidade de transformação, não para produzi-lo ou reforçá-lo, mas para enfrentá-lo, à medida que nos reinventamos. Escrever o medo para resistir.
O meu medo nasceu no armário. Havia uma instituição contando algo sobre o meu corpo e meus afetos, dizendo-me inadequado. As vozes ao redor aprenderam sobre corpos abjetos e empurraram tantas outras bichas para dentro do armário ou para dentro de casa, aquelas que sobreviveram. O medo vive dentro de casa também, reproduzido, reproduzindo, camuflado como amor.
Escrever o medo é assumir o que nos falta, o que nos dói, partindo de incertezas, mas a observar urgências e dissidências indomesticáveis, e entregar-se ao impossível; é reinventar-se e seguir; é seguir rumo ao Eu em construção que sou/somos e que pode ser tantos outros e outras. É inventar estéticas com as palavras, comunicando-se com todas as produções artísticas nos muitos Brasis que existem, é também questionar regimes de identidade à medida que esses criam silenciamentos e marginalizações.
Escrever o medo é assumir os riscos, incorporar resistências e inventar uma casa nova e outros afetos; é inventar o amor que queremos para nós, todos os dias, antes de quase morrer mais uma vez, e mais uma vez, e mais uma vez, todo dia.
Escrever sob o medo, com o terror à espreita, é também criar linhas de fuga, buscar coerência entre falar/agir, manter encontros potentes e honestos com pessoas e afetos, a assumir vulnerabilidades para identificar modos de resistir, e seguir, seguir, seguir.
Raimundo Neto nasceu em Batalha, no Piauí, onde viveu até 2014. Venceu o Prêmio Paraná de Literatura com o seu livro de contos Todo esse amor que inventamos para nós (Editora Moinhos), e foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura com romance inédito. Integra a antologia brasileira escritas por LGBTQs A resistência do vaga-lumes (Editora Nós) e a coletânea de contistas piauienses Caçuá (Fundapi). Foi colaborador da revista eletrônica São Paulo Review. Mora em São Paulo e trabalha como psicólogo e garantia de direitos de crianças e adolescente no Tribunal de Justiça do Estado.